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A horta da Nona como lugar Sagrado

Por Gilnei Casagrande

Escolhi propositadamente esse título. A reflexão que proponho está alicerçada sob dois fatores: o primeiro faz parte da minha história pessoal, pois na minha infância, a horta de minha nona era como se fosse a grande floresta por onde circulavam personagens encantados, menos um lagarto que habitava a parte mais úmida do espaço. Essa foi a parte lúdica da minha vida. A segunda pilastra é a reflexão madura e balizada, sem ser pretensioso, da vida adulta, granjeada ao longo dos anos dentro da Universidade.

A horta ficava distante uns cem metros da casa. Da estrada que dava acesso para a casa, olhando à esquerda, lá estava ela. Uma taipa dupla com aproximadamente um metro e setenta de altura, cercava não mais sessenta metros quadrados dos três lados, o outro, era o próprio "barranco" que a protegia. A cancela, única forma de acesso, era um grande retângulo entremeado por uma tela de arame. Os anos não a colocaram no chão, porém a negritude, fruto do apodrecimento da madeira, foi sua marca registrada.

Uma 'sanga" d'água natural e a provável intervenção do meu nono, fez com que um poço se formasse, o que resultou num permanente estado de umidade, vital para os legumes e verduras. No lado oposto, um frondoso pé de louro fazia sombra, uma roseira vermelha cujas flores não dava mais que cinco ou seis pétalas, um pé de butiá, um limoeiro de fruto alaranjado e um grande arbusto de hortênsias eram os companheiros dos inúmeros pés de chás, hortaliças de diversas espécies, salsa, cebolinha verde, alho, alfaces, raditi, pés de tomates de fazer sombra, morangas, abóboras, pepinos... espalharam-se pela horta por décadas. Esse foi o local sagrado de minha nona.

Qual o significado do Sagrado?

A mulher, por séculos, foi submissa. Sua vontade, seus desejos e anseios sempre se mantiveram enclausurados. Entretanto, a mulher realizava seus sonhos de maneira diversa. Fustel de Colanges, na sua clássica obra Cidade Antiga tece uma curiosa estrutura sobre o Sagrado. É desse elemento que a mulher da colônia nutriu-se. Foi na ante-sala do laboratório - leia-se cozinha - que minha nona realizava seus sonhos e manipulava os ideais. Seus instrumentos foram a enxada, um chapéu de palha, roupas cerzidas e no bolso do avental, as sementes. O germinar de cada grão deixados cair ao acaso, perpassava seus sonhos; era o imaginário, o sagrado e a esperança num único momento de criação.

Seu esposo, por um decreto silencioso dela, somente pisou naquele espaço para suprir com esterco o solo fraco ou reparos de grande monta. Lá era seu espaço e de ninguém mais. Provavelmente canções, poemas e poesias atravessaram os incógnitos campos de sua ingênua imaginação. É provável também que naquele espaço ela tenha desenhado não só o seu futuro, mas também daqueles que gerou. Foi na horta que Angelina presenciou a singularidade da vida e a pluralidade dos seus elementos. A horta, seu espaço sagrado, serviu de ante-sala de seu engenhoso laboratório já referido: a cozinha.

 
Gilnei Casagrande é diretor do Arquivo Histórico Municipal João Leopoldo Lied e Mestrando em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. O artigo se refere ao casal Francisco e Angelina Perini - Linha 28-Gramado/RS.