Há 10 anos - A mulher e o Cálice Sagrado
Ainda que sendo um dos maiores santuários mundiais das obras-primas da História, é curioso que a Espanha não possua nenhum original do maior gênio da pintura universal: Leonardo da Vinci. E eis que, em 2011, Enrique Luria, um colecionador de Barcelona, resolve divulgar o que poderia resolver tão incongruente condição sobre o riquíssimo patrimônio artístico espanhol: ele seria o proprietário de um óleo sobre cobre - com 15 por 12,5 centímetros -, mostrando Santa Maria Madalena deitada, em leitura, próxima a uma caverna. Segundo Luria, era notória uma proximidade daquela obra com a arte do grande gênio da Renascença... e, de certa forma, ele não estava errado. Inclusive, uma análise de pigmentos realizada no laboratório Arte-Lab de Madrid confirmaria em se tratar como algo do início do século XVI, época do maior surto criativo de Da Vinci.
“Madalena em leitura" também é notoriamente uma propaganda cátara (ou albigense), o que reforçaria a ligação de Leonardo com a pintura esquecida. Como assim? Sendo considerado uma ideologia herética, o catarismo defendia que, na verdade, haveriam dois deuses ao invés de um, o Criador. Por esta razão, Bem e Mal coexistiriam sobre a Terra: o primeiro, criado por Deus (entendido como “Deus-Pai” no Cristianismo), e o segundo, por Satanás. Nascida em 1100, na antiga Occitânia francesa (atual Languedoc-Roussillon), esta “Igreja autônoma” baseava-se em preceitos do gnosticismo do segundo século, e considerava Jesus uma entidade espiritual, apenas: portanto, não sendo também carnal, não teria sofrido paixão ou morte... e nem passado pela ressurreição. Ainda que muito influenciado por Platão, Da Vinci também era um devorador de conhecimento contumaz, e basta um mínimo de mente aberta para ver com clareza seu envolvimento com ideias cátaras através da produção literária e artística que deixou. Aliás, a cada dia, este lado esotérico do mestre vem sendo mais e mais naturalmente aceito na comunidade acadêmica. Em nosso caso, vejamos: a própria temática de Maria Madalena em frente à caverna - santa esta bem reverenciada no meio gnóstico - é um símbolo esotérico da fuga para o “eu interior"; e somam-se a ela a presença de uma taça vedada, o Graal. Erroneamente interpretado na Arte como um “vaso de alabastro”, o cálice simboliza a busca pelo segredo da vida e a compreensão sobre os mistérios da morte. Interessante também é a presença de um crânio humano à frente do livro segurado por Madalena, o que nos sugere ser a temática do que ela se põe a ler: a efemeridade da vida e o desapego a tudo que for passageiro - como o mundo material, “criado por Lúcifer”. Iconografia herdada do medievo, a presença do livro também indica a condição de mulher letrada - raridade naqueles dias - e portadora da sabedoria hermética. Mas, da mesma forma, é um alerta para a celeridade de que nos dediquemos ao conhecimento sobre as coisas fundamentais, eternas.
"Madalena em leitura": obra situada na Catalunha poderia ser único autêntico trabalho de Leonardo em solo espanhol. (Foto: La Vanguardia - Barcelona, 2011)
Analisando os aspectos técnicos, a pintura, no geral, possui um flagrante “quê” de amadorismo, simploriedade, e sem o dinamismo, a minúcia e a atmosfera etérea (pelo uso do “sfumato”) que eram as maiores marcas registradas de Da Vinci. Ademais, o corpo da santa, um tanto quanto hermafrodita, se assemelha à representação feita pelo próprio Leonardo em “Leda e o Cisne” - um original perdido, contudo, ainda “sobrevivente” através de cópias de seus pupilos. Uma mulher em formas musculosas, masculinizadas, servia bem à sua compreensão de universo onde os opostos se complementam (no caso, naturezas masculina e feminina). O problema aqui é que o corpo de Madalena foge completamente às regras de proporção na geometria sagrada com a qual o artista imortalizou o “Homem Vitruviano”, que muito bem nos ensinava que a figura humana é a medida de todas as coisas. Na pintura catalã, o corpo se acha bastante desproporcional e estranhamente retorcido - quase um prenúncio não-intencional para as bases cubistas, quatrocentos anos mais tarde.
Como de se esperar, alguma resposta viria em favor da autenticidade. Segundo seus defensores, esta ficará por conta de algumas marcas obscuras na pintura espalhadas tal qual um jogo de “encontre a pista": um “S”, um “L” e um “V” sobre o crânio; uma possível assinatura (“Leonardo”), e algo a lembrar o rascunho de um cidadão à moda milanesa, misturados na cidade ao fundo da paisagem. Curiosamente, estes traços da imagem do cavalheiro - nem sempre fáceis de reconhecer - foram associados a um esboço num dos cadernos de Da Vinci como sendo exatamente a mesma figura. E o tal “S", especula-se, seria a inicial para “Salai", apelido em árabe para “diabinho", como era chamado Gian Giacomo Caprotti, aluno e amante de Leonardo. De acordo com alguns apoiadores da legitimidade de “Madalena”, o gênio o fizera apenas como forma de se homenagear Caprotti - assim como o fizera de maneira oculta na “Mona Lisa”. Mas, será?..
Madalena "pescadora": a recente versão de Hollywood para a mais controversa personagem do Cristianismo. Acima, Rooney Mara é a personagem-título em "Maria Madalena". (Foto: Universal Pictures, 2018)
Para compreendermos como estes sinais teriam ido parar lá se, de fato, a obra não saíra das mãos de Da Vinci, devemos estar cientes de um fator bastante corriqueiro dentre os estúdios de pintura na Itália renascentista - como em vários outros momentos na História da Arte. Assinar uma pintura não tinha, para o artista e seu cliente, o mesmo peso que hoje, numa sociedade de cognições bem mais cartesianas. O que dava conta sobre a autenticidade era mais o estilo com o qual fora forjada que, necessariamente, a participação integral do “mestre” na execução daquele trabalho. Assim, para chancelar estilisticamente o projeto dos seus jovens aprendizes, Leonardo criara o hábito de deixar sua marca timidamente nas pinturas que desenvolviam - uma pequena contribuição orientando e incorporando algumas pinceladas; ou, mesmo, plantando símbolos e iniciais (ou até uma assinatura) aqui e acolá de maneira que só ele compreenderia. Nesta mão, o fato de “Madalena" também poder revelar marcas de pinceladas de um canhoto - no caso, o próprio Leonardo - seria algo totalmente aceito. Em suma: naqueles dias, assinatura nada dizia e, por falar nisso, nem a própria “Mona Lisa” foi assinada.
Sem maiores alardes, por ora, a Madalena catalã deverá ser condicionada ao status de “Escola de Leonardo” (ou “lombarda") - um rótulo que, por razões óbivas, não deixa de ostentar certo charme. Evidente que mais estudos precisarão surgir, ao que se abre para o mundo mais um capítulo na infindável e enigmática carreira do homem-símbolo da Renascença.
Átila Soares da Costa Filho é designer e pós-graduado em História, Filosofia, Sociologia, Antropologia e História da Arte. Também é autor de “A Jovem Mona Lisa” (Ed.Visão, 2013), “Leonardo e o Sudário” (Ed.Multifoco, 2016), e co-autor de “Leonardo da Vinci's Mona Lisa: New Perspectives” (Fielding Graduate University Press, Santa Barbara - California, 2016).