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Artemísia: Bela e Fera

Por Átila Soares da Costa Filho*

Filha mais velha do célebre pintor Orazio Gentileschi e órfã aos doze anos da mãe, Artemísia Gentileschi-Lomi (nascida em Roma, a 8 de julho de 1593) dividiria os serviços domésticos (incluindo os cuidados com os irmãos) com seus primeiros passos nos estudos de pintura. O primeiro trabalho, “Suzana e os Anciões” (1611), veio aos dezessete anos: a influência do pai - o qual deve tê-la em muito auxiliado -, e, consequentemente, da Escola de Caravaggio são mais que evidentes. Outro ponto bem interessante é a temática: a história bíblica de Suzana fala de uma esposa judia assediada sexualmente por dois velhotes os quais, sem sucesso, ameaçam delatá-la como adúltera - em companhia de um rapaz em seu jardim. A jovem mantém-se firme na recusa e o caso vai a julgamento para, mais adiante, a verdade triunfar e os dois falsos moralistas serem condenados à morte. Ora, havia sido justamente neste ano de 1611, quando entregue aos ensinos de um colaborador do pai, Agostino Tassi, um galanteador, que a jovem aprendiz sofre um violento estupro pelas mãos deste. O ato criminoso se dera durante os serviços na decoração dos cofres do Casino delle Muse, Palazzo Pallavicini-Rospigliosi (Roma). A artista, então, se vê obrigada a prosseguir submetida aos abusos de Agostino até que um casamento acontecesse, o quê, graças à quebra de promessa do estuprador – que era casado -, não se confirmaria. Entretanto, Orazio decide levar o caso à justiça devido, principalmente, à filha ser virgem quando da violação. E, após sete longos e moralmente desgastantes meses - sobretudo para a própria vítima, a qual ainda teve de passar por dois exames ginecológicos -, Tassi é condenado a apenas um ano de prisão. Porém, diferentemente da justiça que vemos na conclusão bíblica, Artemísia precisou assistir à anulação da sentença de seu malfeitor. O fato é que a pena fora revista e, a 27 de novembro de 1612, o agressor é condenado por “defloração” a cinco anos de prisão ou ao exílio perpétuo de Roma. Optando pelo retiro, também jamais cumpriria a pena, já que seus influentes mecenas o queriam ainda em atividade ali, presencialmente: e nascia, assim, um ícone a inspirar todo um movimento pela igualdade de gênero mundo afora. Annalisa di Maria, especialista italiana em Arte, me conta: “Para além da história por trás de ‘Suzana’, o que nos resta é apreciar uma bela obra a expressar toda a grandeza feminina: a primeira e única que seguiu com meticuloso amor os passos do grande Caravaggio; e que conseguiu estabelecer-se como pintora e como mulher. Ela se consolida na História como exemplo de coragem e beleza para todas as outras.”

Autorretrato em "A morte de Cleópatra" (Portland Museum of Art). Fonte: Wikimedia Commons

Como de costume, o forte escândalo fez com que Artemísia fosse prontamente arranjada em outro casamento, com Pierantonio Stiattesi – mais um pintor, sem muito brilho -, antes de se mudar para Florença em 1614, onde seria admitida como a primeira mulher na Accademia del Disegno, em 1616. É em torno deste período que inicia sua obra mais emblemática e controversa: “Judite e Holofernes”. Aí, a heroína bíblica Judite nos é flagrada, junto com a criada, a decapitar o general assírio Holofernes – invasor de seu povo sob as ordens de Nabucodonosor II. Embriagado por aquela atraente viúva hebreia no interior da própria tenda, o infeliz general é representado sob a mais alta agonia em instantes antes da morte; decapitado, não num único e misericordioso golpe, mas à sinistra condição de ter seus vasos sanguíneos, carne e osso degustativamente serrados por Judite - hoje considerada um dos baluartes de caráter feminista mais festejados na Bíblia. Consumado o feito, esta retorna à Betúlia de posse de seu macabro troféu a despertar a resistência judia e, consequentemente, conduzi-la à vitória. Na obra, a iluminação - totalmente sugada do estilo de Caravaggio -, em “chiaroscuro”, aumenta o intimismo da tensa situação, contrastando com a luz redentora com que Guido Reni (seu famoso contemporâneo) fazia anjos e santos submergirem das trevas. Para Artemísia – assim como para seu mentor -, a luz é em oposição às sombras enquanto fator revelador do que fazemos, seja bom ou ruim, a ser julgado pelo observador que a contempla. Artemísia, sob a complexidade dos sistemas jurídicos e sociais com a qual foi obrigada a conviver e se submeter, certamente soube lidar com este conceito em narrativa imagética a favor de sua própria tragédia: Artemísia é Judite.  

Em 1618, ela e o marido chegam a ter uma filha, a primeira de quatro, Prudentia (talvez, assim como a mãe, uma pintora) – batizando-a com o nome da avó materna, em sua homenagem. Provedora principal do lar, Artemísia inicia um caso extraconjugal com Francesco Maria Maringhi, alto funcionário da corte dos Medicis e de família nobre. À época, ainda que atraindo algumas comissões importantes – como da Casa Buonarrotti, dos Medici e do Rei da Inglaterra -, o nível de importância que havia adquirido era inquestionavelmente abaixo do equivalente masculino. Mais tarde, com o casamento em franco processo de corrosão provocado, sobretudo, pela falência financeira do marido, dívidas e por insinuações do adultério lançadas contra si, sem muito mais no que progredir ali, a artista regressa a Roma em 1620. Viaja, então, para Gênova e Veneza.

Após uma mudança para Nápoles em 1630, a pintora se reencontraria com Orazio oito anos depois em Londres, unindo-se ao pai como convidados e pintores da corte da Rainha Consorte Henrietta Maria e do Rei Carlos I Stuart. 

Em 1642, de volta a Nápoles, a artista retoma suas atividades até que, em 1656, com a saúde abalada e tendo que lidar com constantes golpes financeiros, vem a falecer aos 63 anos de idade, vítima da praga que devastara Nápoles naquele mesmo ano. 

Século XXI, celebrada largamente na maioria das pautas feministas na arena de discursos e movimentos ideológicos impulsionados pelo alcance e imediatismo das novas relações intersociais, ela é sinônimo de representatividade, luta por direitos e reconhecimento do potencial da Mulher. 

Átila Soares da Costa Filho é designer e pós-graduado em História, Filosofia, Sociologia, Antropologia e História da Arte. Também é autor de “A Jovem Mona Lisa” (Ed.Visão, 2013), “Leonardo e o Sudário” (Ed.Multifoco, 2016), e co-autor de “Leonardo da Vinci's Mona Lisa: New Perspectives” (Fielding Graduate University Press, Santa Barbara - California, 2016).

asoarescf@zipmail.com.br

Bibliografia: 

BAL, Mieke.(org.). The Artemisia files: Artemisia Gentileschi for feminists and other thinking people. Chicago e Londres: The University of Chicago Pree, 2005.

GARRARD, Mary D. Artemisia Gentileschi: the image of the female hero in Italian Baroque art. Princeton: Princeton University Press, 1989.

PERROT, M. As mulheres ou os silêncios da história. Bauru-SP: Edusc, 2005.