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Bellocchio denuncia as trevas do fundamentalismo

Por Luiz César Cozzatti

No Festival de Veneza, em 2003, Bom Dia, Noite, de Marco Bellochio, levou o prêmio de melhor roteiro, perdendo o de melhor filme para o igualmente extraordinário O Retorno, de Andrej Zvjagintsev, e o de direção para Takeshi Kitano (de Zatoichi). Concorria com outro filme italiano, Os Sonhadores, de Bernardo Bertolucci, drama claustrofóbico a relembrar os impasses de uma época e ambos de ressonâncias muito freudianas.

Bellochio (Piacenza,09/11/39) estudou filosofia e pintura, antes de decidir-se pelo cinema, ao qual chegou realizando curtas-metragens. Com De Punhos Cerrados (1965), inaugurou aos 26 anos um estilo de cinema contestador e político, que transcendia o neo-realismo dos anos 40 e 50 ao mesclar elementos tipicamente psicanalíticos num esforço de entender os comportamentos bizarros de seus personagens. Sua militância política de esquerda e seu tratamento psicanalítico com o célebre Massimo Faggioli (com quem elaborou o roteiro de O Diabo no Corpo, sua versão do livro de Radiguet anteriormente levado à tela por ClaudeAutant-Lara sob o título - no Brasil- Adúltera) levaram-no a uma original e consistente síntese do confronto entre Marx e Freud.

Desajustes familiares estão na raiz do comportamento dos personagens de seus filmes e não estão de fora no seu último filme, que resgata - a pedido da RAI, a estatal de rádio, TV e cinema - o trágico episódio do seqüestro e morte do líder democrata-cristão Aldo Moro pelos terroristas das Brigadas Vermelhas. O filme baseia-se no livro Il Prigioniero (1999), sobre as memórias de um (Anna Laura Braghetti) dos quatro seqüestradores, o relato dos 55 dias de cárcere privado de Moro e sua execução sumária em nome dos supostos interesses do proletariado.

Mas Bellochio não se limita a ilustrar realisticamente essas memórias, mesclando a rotina diária dentro e fora do apartamento onde está preso Moro e a troca de diálogos entre a vítima e seus seqüestradores, bem como as fantasias e sonhos de Chiara (Maya Sansa, grande atriz que já trabalhara com o diretor no inédito La Balia, de 1999). O filme propõe-se a analisar as motivações dos fundamentalismos, um fenômeno que recruscede em todo o mundo ocidental e oriental, à direita (vide a obscurantista política do presidente Bush e seus asseclas) e à esquerda.Usa os progressivos questionamentos de Chiara (em português, Clara, a demonstrar a lucidez que a moça desenvolverá, auxiliada pelos diálogos com o colega Enzo, que está escrevendo uma peça de teatro sobre as Brigadas, e que é bem o alter ego do diretor, um artista antidogmático e questionador).

O autoritarismo como fruto de uma vida ascética que sublima as necessidades naturais do ser humano lembra a visão marxista freudiana do nazismo que o genial Luchino Visconti filmou em Os Deuses Malditos.O início do filme quando o falso casal aluga o apartamento que servirá de prisão dá uma idéia de sexualidade falsificada e reprimida a gerar comportamentos, pensamentos e sentimentos aberrantes e desviantes. Chiara dorme numa cama de casal mas, sob a sombra da cruz, símbolo da cristandade, nada acontece. Porque Clara vive uma existência assexuada, reprimida, que o colega Enzo ironiza.A reunião do grupo às refeições lembra a Santa Ceia, onde surgem as discussões e contradições do grupo.E não é a toa que um dos livros lidos por Chiara é A Sagrada Família, de Marx e Engels.

Já a prisão camuflada atrás de uma imponente biblioteca é bem o símbolo da falência de um conhecimento inútil para libertar o ser humano, mas que inclusive serve a propósitos contrários. A TV sempre ligada fala de uma imprensa incapaz de esclarecer e elucidar aquilo que registra de forma superficial e sensacionalista, sempre favorável ao sistema. Há toda uma simbologia edípica na relação de Clara e seus colegas com o político seqüestrado, uma figura parental frágil e que, frente à perspectiva da morte anunciada, chega a beirar o patético nos seus esforços de procurar sobreviver.

Moro é vivido por um grande ator, Roberto Herlitzka, descoberto por Lina Wertm"uller nos anos 70. A iluminação do filme, entre o acobreado e o azul noturno, reforçam a idéia de que estamos vendo uma metáfora da dinâmica inconsciente dos fundamentalismos, com sua lógica irracional, suas justificativas contraditórias e seus efeitos contraproducentes que fazem o jogo dos contrários. No caso, Aldo Moro, da Democracia Cristã, tinha proposto o "compromisso histórico", convidando o Partido Comunista Italiano a fazer parte de um governo de coalizão com o PDC. Por mais que a  DC estivesse mergulhada em corrupção, a morte punitiva de um de seus líderes não resolveu qualquer problema, talvez atraindo a antipatia  pública para os seus opositores.

Espetáculo de grande liberdade criativa e desassombrada coragem de enfrentar tabus, inclusive no seio da própria esquerda, Bom Dia, Noite, que tem seu título extraído de uma estrofe de poema homônimo de Emily Dickinson, é um filme extraordinário que se valoriza a cada revisão e que deve ser visto, nem que seja na cópia de DVD ou VHS, por ora inexistentes. Exemplo de um cinema político sutil e contundente, que mostra o pleno vigor criador deste cineasta de 64 anos, que tanto desafia a Igreja católica, quanto a hipócrita moral burguesa e o cinema convencional. Na trilha sonora notável, excertos da Misa criolla de Ariel Ramírez, passando pelo Dark Side of the Moon, do Pink Floyd, e o Momento musical nº 94, de Franz Schubert.

Filmes de Marco Bellochio disponíveis dm DVD e VHS:

Olhos Na Boca (Gli Occhi, la Bocca, 1982) - Poletel.
O Diabo no Corpo (Diavolo nel Corpo,1986) - Globo Vídeo.
Em Nome do Diabo (La Visione del Sabba,1988). Paris.
Processo do Desejo (La Condanna,1991) - Top Tape.

Luiz César Cozzatti é médico psicanalista, crítico de cinema, jurado do Festival Internacional de Cinema de Gramado.