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Cidadania a brasileiros é acusada de obstruir tribunais no Veneto  

O Tribunal de Veneza, sede regional para os procedimentos do Vêneto, recebe 43% dos pedidos de cidadania italiana por descendência de toda a Itália. Segundo o presidente da instituição, Salvatore Laganà, em 30 de agosto de 2024, ou seja, dois anos após o trâmite ter sido descentralizado de Roma, havia mais de 23 mil processos, sendo 18 mil pendentes, ainda por tramitar. O problema, tanto no âmbito judiciário quanto administrativo, tem sido tema recorrente na mídia do país. Leia a seguir matéria publicada no portal italiano de notícias Il Post, que trata sobre a cidadania ius sanguinis, especialmente aquelas reconhecidas a ítalo-brasileiros, cujo grande fluxo estaria obstruindo a justiça veneziana.


O tribunal de Veneza está entupido de pedidos de cidadania

Possui mais de 18 mil recursos pendentes, para quase 100 mil pessoas que gostariam de se tornar italianas com base no "ius sanguinis".
No Vêneto existem dezenas de municípios que têm centenas de pedidos de cidadania em atraso de pessoas que vivem no estrangeiro: a maioria vem da América do Sul e em particular do Brasil, onde muitos deles têm direito à cidadania italiana, com base no assim denominado ius sanguinis, em latim “direito de sangue”, pelo qual uma pessoa pode ser reconhecida como italiana se tiver pelo menos um ancestral italiano, mesmo que muito distante no tempo. Qualquer pessoa nesta condição também é chamada de “oriundo”.

Quando os municípios recusam pedidos, são frequentemente apresentados recursos: todos acabam no tribunal de Veneza, que é responsável por todos os pedidos na região. Os recursos acumulados são muitos e influenciam fortemente o trabalho do tribunal: o presidente Salvatore Laganà disse ao Corriere del Veneto que existem atualmente cerca de 18 mil casos pendentes, 43 por cento dos quais estão em curso em toda a Itália.

Dado que cada pedido pode abranger famílias inteiras, 18 mil pedidos significam também que muito mais pessoas solicitaram a cidadania. Segundo estimativas divulgadas por Laganà, o número pode chegar perto de 100 mil.

A razão pela qual existem tantos pedidos de cidadania dirigidos ao Vêneto vindos do exterior é que a região foi uma daquelas de onde mais pessoas emigraram no século XIX, dezenas de milhares delas em direção ao Brasil: a consequência é que muitos ainda hoje conseguem demonstrar que têm um parente italiano distante. Para um brasileiro, obter a cidadania italiana pode ser muito vantajoso: por exemplo, significa poder se deslocar para países do espaço Schengen sem a necessidade de passaporte, ou poder obter vistos como o dos Estados Unidos, mais facilmente.

Os pedidos são encorajados pelo fato de a lei italiana sobre a cidadania ser muito permissiva neste aspecto específico, embora seja conhecida por ser muito rigorosa - entre as mais rigorosas da Europa - nos requisitos para a obtenção da cidadania em geral. Desta forma, especialmente no Vêneto, ao longo dos anos, a cidadania foi concedida a muitas pessoas que não vivem em Itália, criando um paradoxo: há municípios venezianos em que existe uma concentração completamente anômala de "residentes no estrangeiro" para a sua dimensão. Muitas vezes são pessoas que nunca estiveram nesses locais, mas que podem votar nas eleições nacionais.

Um dos casos mais citados, por ser particularmente emblemático, é o de Val di Zoldo, que tem pouco menos de 3 mil residentes e outros 1.700 cidadãos residentes no exterior para administrar em seu cadastro, metade dos quais no Brasil. Em Val di Zoldo – um local que como outros locais semelhantes na Itália tem problemas de despovoamento, e onde nasceram 11 crianças desde o início de 2024 – há 550 pedidos de cidadania a estrangeiros pendentes.

O ius sanguinis em vigor na Itália é atualmente regulamentado por uma lei de 1992: prevê que uma pessoa só é automaticamente italiana se pelo menos um dos seus pais for italiano. Com base neste princípio, a lei reconhece como cidadãos italianos todos aqueles que possam demonstrar que tiveram um antepassado italiano, mesmo que bastante distante, mesmo que nunca tenham estado na Itália e não falem italiano.

Até 1948 não era assim: a cidadania italiana era transmitida apenas através do pai. Portanto, se um cidadão italiano tivesse casado com um estrangeiro antes desse ano, os seus filhos e descendentes não poderiam ser reconhecidos como cidadãos italianos. A entrada em vigor da Constituição em 1948 garantiu maior igualdade de direitos e a partir desse momento o ius sanguinis passou a aplicar-se também aos filhos de mulheres casadas com estrangeiros. Várias sentenças demonstraram posteriormente que o direito ao ius sanguinis também é válido para os descendentes de mulheres italianas nascidas antes de 1948.

Muitos dos pedidos acumulados no Vêneto dizem respeito a cidadãos brasileiros que pedem a cidadania italiana, demonstrando que tiveram uma parente distante excluída do ius sanguinis. Nestes casos o pedido não pode ser gerido pelos consulados no estrangeiro, como acontece com os pedidos normais de cidadania, mas deve ser avaliado por um tribunal italiano. Os advogados devem apresentar documentos, certidões de casamento e nascimento que comprovem que a linhagem familiar não foi quebrada.

Os pedidos do exterior chegam à Itália mesmo quando não dizem respeito a parentes do sexo feminino, caso os consulados não consigam respeitar o prazo de 730 dias estabelecido para responder ao pedido de cidadania. Principalmente na Argentina e no Brasil, os tempos de espera são muito longos, podendo chegar a vários anos, e por isso muitas pessoas recorrem à justiça italiana.

Só nas últimas semanas na política italiana tem havido muita discussão sobre a possibilidade de alterar os requisitos para a obtenção da cidadania: isso acontece de forma cíclica e sempre sem sucesso, especialmente depois de eventos como as Olimpíadas, em que muitos atletas italianos nascidos de pais estrangeiros e que só conseguiram obter a cidadania após solicitá-la aos 18 anos.

Nestes casos, o que normalmente se discute é a possibilidade de introduzir leis baseadas em outros direitos que não o ius sanguinis: por exemplo, o ius soli, pelo qual a cidadania é recebida com base no local de nascimento, ou o chamado ius scholae, aquela mais citada e proposta por alguns políticos nos últimos tempos, segundo a qual a cidadania seria dada com base em um determinado número de anos escolares cursados na Itália.

Agora, porém, no Vêneto falamos mais sobre a possibilidade de impor mais restrições ao ius sanguinis já em vigor: o presidente do Vêneto Luca Zaia, por exemplo, sugeriu a adoção de critérios mais rigorosos sobre o conhecimento da língua, que segundo ele permitiria "ajudar quem realmente se sente italiano, e não quem se interessa apenas por documentos".

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