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Cidadania Italiana: Sem poder viajar, via judicial é a alternativa

Requerer a cidadania italiana direto na Itália, de forma presencial, e tornar-se um cidadão italiano, dispor de um passaporte europeu, sem ter que esperar por anos a fio nas longas filas dos consulados italianos, é um sonho acalentado por muitos ítalo-brasileiros

Entretanto, a recente medida restritiva imposta pelo governo da Itália, que impede a entrada de brasileiros em território italiano, por conta da disseminação do novo coronavírus, inviabiliza por completo essa possibilidade – pelo menos, até segunda ordem. 

Além desse impedimento, cuja validade ainda é incerta, a cidadania italiana requerida pela via administrativa, direto num comune na Itália, já antes da pandemia vinha sofrendo vários reveses. 

Dado o grande número de crimes descobertos, envolvendo falsos documentos e residências fictícias, principalmente desde 2018, cada vez mais comunes aderiram a normas particulares visando se proteger de possíveis fraudes.

Foram criados, em alguns casos, requisitos próprios para o tramite da documentação.  Alguns comunes, por exemplo, noticiaram se recusar a receber documentos de intermediários, enquanto outros informaram exigir que o postulante à cidadania italiana residisse de fato no comune – ao invés de fixar apenas um tempo mínimo de residência.

Independente de eventuais controvérsias, hoje de forma inequívoca pode-se afirmar que resta ao ítalo-descendente optar por apresentar o processo de reconhecimento da cidadania italiana, junto ao Tribunal de Roma, pela via judicial, tendo à frente um advogado habilitado a atuar em território europeu. Ou esperar por um prazo indefinido a certificação da cidadania pela via consular italiana no Brasil.

Nesse sentido, a fim de esclarecermos os principais pontos do assunto, conversamos com o advogado ítalo-brasileiro Mathias Haesbaert, sócio da Porto Italia Cidadania Italiana, escritório especializado em cidadania italiana com atuação no Brasil e na Itália. O Dr. Mathias é inscrito na Ordem dos Advogados de Roma (Avvocato Stabilito), na Ordem dos Advogados de Portugal (Conselho Regional de Lisboa) e na Ordem dos Advogados do Brasil (seção Rio Grande do Sul).

Acompanhe a entrevista, a seguir.

1- Dr. Mathias Haesbaert, quem pode requerer a cidadania italiana pela via judicial no Tribunal de Roma?

Em tese, todos os descendentes de italianos podem buscar o reconhecimento da sua cidadania italiana perante o Tribunal de Roma. O que varia é a justificativa para o ajuizamento da ação, que muda conforme a situação de cada família. De um lado, é a constituição da árvore genealógica familiar que vai determinar se a ação seguirá esse ou aquele caminho. Por outro lado, é o local de residência das pessoas que acaba definindo a escolha dos argumentos por parte do advogado.

2. Explique melhor essas diferenças, por favor.

Basicamente há dois tipos de ações no Tribunal de Roma em matéria de cidadania italiana: a Via Materna e a Via Paterna. Embora existam outros tipos, essas duas ações formam a maioria dos processos em trâmite no Tribunal de Roma atualmente e são as mais importantes. A Via Materna se configura quando na linha de descendência houver uma mulher que casou com um estrangeiro (ou seja, um homem que não é italiano) e teve com este estrangeiro um filho nascido antes de 1948. Segundo as leis italianas da época, a linha de transmissão da cidadania teria sido interrompida e, portanto, não é possível buscar o reconhecimento da cidadania italiana pelos meios administrativos, comuns (perante os Consulados no Brasil ou nos Comunes na Itália). Nesses casos é necessário ingressar com uma ação judicial no Tribunal de Roma para ser reconhecido italiano.

Todos os outros casos familiares recaem na regra geral da cidadania italiana, também chamada de Via Paterna ou Via administrativa. Esses descendentes, caso não queiram enfrentar a burocracia e as longas filas dos Consulados, podem se valer do caminho judicial da mesma forma que as famílias da Via Materna.

Para isso, devem entrar na fila do Consulado italiano da sua região (se já não estão) e posteriormente ingressar com o processo perante o Tribunal de Roma alegando o descumprimento da lei por parte do Estado Italiano e solicitando o reconhecimento da cidadania italiana diretamente por um juiz. A lei italiana prevê o prazo máximo de 730 dias para que a Administração Pública da Itália finalize o reconhecimento da cidadania italiana de um descendente de italiano, o que não está sendo respeitado na grande maioria dos casos: como todos sabem, as filas consulares (em sua maioria) ultrapassam o prazo de dois anos, o que justifica o ajuizamento da ação perante o Tribunal de Roma. Resumidamente, esse é o fundamento das ações judiciais pela Via Paterna, por isso também chamadas de ações contra as filas dos Consulados.

2- Existe um prazo ou limite de gerações para exercer o direito à cidadania italiana?

A Itália tem uma legislação bastante generosa com seus descendentes, a qual não prevê limite de gerações (possivelmente é o país da Europa com a legislação mais generosa de todas, aliás). Todo e qualquer descendente de italianos pode buscar o reconhecimento da sua cidadania italiana, não importa se a pessoa é filho, neto, bisneto ou tataraneto de italiano. O que varia é o caminho a ser percorrido por cada um (administrativo ou judicial), a ser definido de acordo com a situação familiar e conforme o interesse pessoal dos requerentes.

3- Quais documentos são necessários para instruir o processo judicial de reconhecimento da cidadania italiana?

A cidadania italiana, via de regra, é transmitida por sangue (jus sanguinis), de uma geração para outra. Diferentemente do critério brasileiro, relacionado ao local do nascimento (jus soli), para a Itália o que importa é a descendência da pessoa.

Nesse contexto, para ser reconhecido italiano o descendente deve demonstrar o vínculo de sangue com o parente italiano que deixou a Itália e emigrou para o Brasil.  Para demonstrar essa ligação, é necessário juntar as certidões de nascimento, casamento e óbito desde o italiano até os requerentes, devidamente traduzidas e apostiladas, bem como a CNN (certidão negativa de naturalização) do italiano com a finalidade de comprovar que o mesmo não se naturalizou brasileiro (igualmente traduzida e apostilada).

Nos casos de Via Paterna (ações contra as filas consulares) ainda se junta no processo o comprovante do ingresso (ou tentativa de ingresso) na fila de espera do respectivo Consulado bem como documentos demonstrando a precariedade da sistemática adotada por esse mesmo Consulado.

4- O senhor poderia nos explicar, brevemente, como funciona o processo no Tribunal de Roma? O requerente precisa comparecer no Tribunal?

Trata-se de uma ação judicial ajuizada perante o Tribunal Ordinário de Roma mediante procuração: não há necessidade de ir para a Itália em nenhum momento (a audiência é realizada apenas com a presença do advogado).

Nessa ação os requerentes pedem ao juiz designado para julgar o processo que analise as certidões e declare que eles são italianos. O juiz, concluindo que a ação tem fundamento, profere a sentença (chamada de Ordinanza), reconhece a condição de italiano dos requerentes e, ao final, ordena ao Órgão Público Italiano competente que proceda no registro dos atos de nascimento e casamento desses novos italianos.

5- Em média, quanto tempo demora o processo no tribunal de Roma?

A duração do processo sempre dependerá da agilidade do juiz que for designado para julgar a causa, como em qualquer processo judicial, mas em média podemos falar em dois anos.

6- Existe jurisprudência favorável, nos diferentes casos? Desde quando?

Nos casos de Via Materna a jurisprudência está consolidada há mais ou menos dez anos.

Na chamada Via Paterna (ação contra as filas consulares) já existem inúmeras sentenças favoráveis reconhecendo a cidadania italiana de descendentes em virtude da enorme demora para obter a cidadania italiana fazendo o processo no consulado italiano no Brasil. Os juízes já conhecem a matéria e estão informados a respeito da precária realidade dos consulados italianos no Brasil.

Podemos dizer que a jurisprudência também está consolidada favoravelmente no Tribunal de Roma nesses casos de Via Paterna e – convenhamos – não é para menos, já que o próprio fato do requerente estar em uma fila com outras centenas de famílias esperando por um direito básico que é seu desde o nascimento constitui uma ilegalidade flagrante por parte da Administração Pública italiana.

A tese da Grande Naturalização, já rechaçada em Primeira Instância, provavelmente será afastada também no Segundo Grau.

7 – Com base na sua experiência, quais os riscos do processo ser indeferido pelo juiz? Em quais casos isso pode acontecer?

Se a documentação está bem preparada e a argumentação do advogado é correta, as chances de indeferimento são muito pequenas no cenário atual. Pode haver alguma complicação quando há determinados erros/discrepâncias nas certidões, por isso é muito importante analisar com calma toda a documentação previamente e, quando necessário, proceder nas retificações das certidões de registro civil.

Em alguns casos, chamados de “Pseudo Materna”, nos quais os requerentes optam por buscar o reconhecimento da sua cidadania italiana pelo lado materno da família mesmo sendo possível utilizar o lado paterno, o risco é maior.

8 – Hoje, em vista das medidas de prevenção contra o novo coronavírus, no caso específico da cidadania italiana, o poder judiciário está funcionando normalmente na Itália? Qual é a situação para quem deseja obter o reconhecimento da cidadania italiana pela via judicial – isso hoje é possível?

No primeiro semestre de 2020, por conta da pandemia, houve adiamentos de audiências anteriormente agendadas até o final de junho, então quem tinha audiência marcada para esse período foi prejudicado. O Tribunal segue recebendo os processos de cidadania italiana e novas ações estão sendo ajuizadas. Difícil prever o futuro, mas a tendência é que não mude muita coisa. A menos que algo muito grave aconteça, quem deseja buscar na Justiça Italiana o reconhecimento da sua cidadania italiana continuará tendo essa possibilidade, normalmente.

9 - Qualquer advogado está habilitado a apresentar o processo no Tribunal de Roma? 

Não, apenas advogados inscritos na Ordem de Advogados italiana podem patrocinar causas judiciais na Itália.

10 – Em sua opinião, quais as vantagens e facilidades oferecidas pelo caminho judicial de reconhecimento da cidadania italiana, em comparação com as vias administrativas? 

A primeira vantagem dessa alternativa é que ela evita a burocracia consular e elimina a necessidade do requerente ficar anos e anos aguardando a convocação no Consulado. Outra vantagem é que não há a necessidade de se deslocar até a Itália e fixar residência por lá: tudo é feito dentro de um processo judicial e o reconhecimento da cidadania é feito por um juiz de direito italiano. Depois de ser reconhecida italiana por um juiz na Itália, a pessoa está segura e certa de que ninguém poderá discutir ou questionar o procedimento no futuro, diferentemente dos processos que são feitos pela via administrativa (Consulado e Comunes).

Em relação ao caminho consular há também uma outra vantagem importante: no final do processo a pessoa estará registrada no Comune de origem da família e terá consigo a sua certidão de nascimento italiana, o que seguidamente não ocorre nos procedimentos administrativos que tramitam nos consulados. Muita gente não sabe mas o fato da pessoa ter o passaporte não significa que ela de fato está registrada na Itália, pois os consulados emitem os passaportes mesmo sem esse registro (aliás, essa é a regra geral, com uma ou outra exceção). As pessoas que fazem os seus processos pelos consulados não prestam muita atenção nesse detalhe pois só pensam no passaporte. Aí, futuramente, quando decidem morar no exterior, são surpreendidas com o fato de não possuírem registro algum na Itália e enfrentarão dificuldades para regularizar a sua situação.

Considerando que nas ações judiciais podem entrar vários parentes/familiares, é possível (e é o que geralmente ocorre) a divisão dos custos com outras pessoas, o que é mais um facilitador igualmente. Por último eu citaria o prazo de duração do processo (média de dois anos), bem razoável.

11. Aproveitando que estamos falando do assunto, as pessoas normalmente falam em “tirar” a cidadania italiana: está correto isso? Qual seria a definição mais adequada?

Sim, é muito comum as pessoas falarem que pretendem “tirar” a sua cidadania italiana, mas o correto é “buscar o reconhecimento” da sua cidadania italiana. Todos os descendentes de italianos são italianos desde o nascimento, eles só não foram reconhecidos como tais pelo Estado italiano. Quando eles protocolam o pedido, estão buscando o reconhecimento de uma condição pré-existente, justamente a sua condição de italianos. Ninguém “tira” nada.

12. Por se tratar de um simples reconhecimento, esse procedimento não deveria ser mais simples e menos burocrático?

Sim, deveria. Num contexto “normal” os descendentes preparariam a documentação, agendariam uma data, entregariam as certidões no Consulado da sua região e depois de um tempo razoável (um ano, por exemplo) seriam reconhecidos italianos. Ocorre que a estrutura dos consulados é limitada e o número de descendentes italianos no Brasil (principalmente nas regiões Sul e Sudeste) é muito grande, o que acaba ocasionando as famosas filas de espera consulares.

13. É necessário possuir sobrenome italiano para ter direito ao reconhecimento da cidadania italiana?

Não. Esse é um dos mitos (há vários) da Cidadania Italiana. O que importa é ser descendente de italiano, nada mais. Dou, como exemplo, o meu caso pessoal: o meu sobrenome, como se pode notar, é tudo menos italiano, no entanto eu sou cidadão italiano por sangue, já que a minha linha de descendência é feminina. Quando há mulher na árvore genealógica, é comum que o sobrenome do italiano tenha se perdido, pois muitas vezes só se passa o nome do pai para os filhos do casal. Esse é o meu caso e de muitos outros ítalo-descendentes.

14. Por último, é exigido o conhecimento da língua italiana nos procedimentos de reconhecimento da cidadania italiana?

Não. A proficiência na língua italiana (em nível intermediário, ressalte-se) somente é necessária nos procedimentos de cidadania por casamento (Naturalização).