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Meu caro Giovanni

Durante quase vinte anos um tenor italiano que vive em Coimbra trocou correspondência com João Paulo II. Algumas semanas antes de morrer, Karol Wojtyla mandou escrever uma última carta a Giovanni D’Amore. Apesar de nunca ter cantado para o Papa tem uma certeza: “O Santo Padre ouvia a minha música”.

Sem o mediatismo de Luciano Pavarotti ou de Andrea Bocelli, Giovanni D’ Amore, um tenor italiano que vive em Portugal há dois anos, conseguiu, no entanto, o reconhecimento de quem mais venerava: do Papa João Paulo II.

Desde 1987 que o cantor trocava correspondência com o Sumo Pontífice e foi, talvez , a última pessoa a receber uma carta do Vaticano, assinada pelo assessor, mas em nome de Bispo de Roma. A missiva datava de 21 de Fevereiro, o dia em o seu estado de saúde se agravou. Mas já antes, a 18 de Janeiro deste ano – treze dias depois João Paulo II entrava de emergência no hospital Gemmeli, em consequência de uma infecção respiratória -, Giovanni D’Amore e a mulher receberam os votos de um bom 2005 por parte do Sumo Pontífice. “Testemunha e arauto incansável deste mundo que desponta, Sua Santidade o Papa João Paulo II concede-lhe, extensiva a quantos lhe são queridos, uma propiciadora Bênção Apostólica. Aproveito o ensejo para lhe desejar um feliz Ano Novo, com protestos de Fraterna consideração em Cristo Senhor.” Estas foram algumas das muitas palavras que Karol Wojtyla partilhou com Giovanni D’Amore das várias vezes que lhe escreveu ou respondeu a agradecer a música que o tenor lhe enviava. “Na primeira vez que lhe escrevi, mandei-lhe uma cassete vídeo do meu primeiro concerto, na Igreja de Santa Maria do Rosário, em Parma. O Santo Padre respondeu-me a agradecer”, recorda D’Amore.

Nessa altura, o tenor italiano, que irá completar 40 anos daqui a uma semana, era apenas um jovem estudante de música e membro do coro da Universidade de Parma. No ano a seguir ao atentado, em 1982, Giovanni D’Amore teve a oportunidade, juntamente com o grupo de música a que pertencia, de cantar para João Paulo II, na Praça São Pedro, durante as cerimónias do ‘Jubileu dos Confraternitás’. “Foi emocionante. Era a primeira vez que o Santo Padre saía, depois do atentado.” A experiência repetiu-se, ainda nos tempos de estudante, num concerto com a orquestra do coro, na Igreja de Santo Ignatio, na capital italiana. “Éramos 300 pessoas em palco”, lembra.

Dos concertos da juventude nasceram dois sonhos: cantar uma ‘Ave Maria’ para a Nossa Senhora de Fátima e dar um concerto para o Sumo Pontífice. Concretizou o primeiro desejo em 1999 – no último Domingo de Páscoa Giovanni também actuou no Santuário. “De todos os espectáculos que tinha feito, com grandes salas cheias, o das comemorações do 13 de Maio era o mais emocionante. Havia uma carpete humana interminável que ficou para sempre no meu coração”, descreve. O segundo ficou por realizar. “O desejo da minha vida sempre foi cantar para o Santo Padre, no Vaticano. Na quarta--feira, enviei uma carta de resposta à que recebi, onde dei as minhas condolências ao Vaticano e onde manifesto esse meu desejo.” Apesar do sonho não se ter materializado, D’Amore tem a certeza que o Papa João Paulo II ouvia a sua música: “Quando o Santo Padre me recebeu, em Fevereiro de 1999, disse-me ‘Giovanni tem o dom de Deus. Como Santo Agostinho dizia, ‘Canta bem e ainda melhor.’ Abençoou o meu trabalho e depois fez-me uma festa e avisou-me que devia saber gerir essa dádiva e utilizá-la para fins nobres. Foram palavras muito bonitas que nunca mais esqueci e que sigo piamente”.

A VOZ COMO TERAPIA

Uma das muitas vezes em que Giovanni D’Amore usou a voz para ajudar alguém foi nos Açores, onde deu um concerto no Pico. O objectivo era conseguir angariar fundos para um tratamento no estrangeiro de uma menina com paralisia cerebral. A criança esteve seis meses em Cuba. “Depois disso, os pais da Inês levaram-na a Coimbra a agradecer-me. Fiquei muito sensibilizado”. Seguindo o conselho do Papa, o músico nunca rejeita convites para ‘emprestar’ o dom vocal aos que estão em dificuldades: “Tenho o maior prazer em cantar num lar, num hospital. Ajudar faz parte da minha profissão. A música pode ter uma função terapêutica e essa é a minha prioridade, enquanto tenor: partilhar a alegria onde há sofrimento”.

Giovanni D’Amore acredita que “este Papa era a encarnação de Jesus Cristo e que veio para salvar e abrir os olhos da humanidade. ‘Vejam o que está a acontecer. Redimam-se. Pensem que o mundo pode acabar por causa dos erros, egoísmos e tudo de mau que estamos a viver neste momento”. Ele levou a cruz de Jesus Cristo até ao último instante”.

Apesar da comparação, Giovanni D’Amore tinha um sentimento muito humano por João Paulo II: “Estamos a falar de São Pedro, mas atrevia-me a dizer que ele é como um pai, uma avó, pois transparecia muito carinho pelo mundo. Não é por acaso que os jovens adoravam este Papa. Tinha um carisma muito forte. Para mim, é já um santo, embora sempre tenha defendido que era um homem que sobrevivera à vida. Viveu a guerra, o Holocausto. Falava daquilo que conhecia, estava próximo das pessoas. Era um homem bom. Um verdadeiro herói”.

Nas quase quatro décadas de vida, Giovanni D’Amore conheceu vários Papas, mas nenhum lhe despertou o mesmo sentimento que João Paulo II, desde a primeira vez que falou ao público, na Praça de São Pedro. “Senti uma empatia imediata. Ele saudou as pessoas e disse: ‘Chamaram-me a ser Bispo de Roma. Se me engano na língua, que não é a minha, corrijam-me’. Foi de uma humildade incrível.”

O valor que o Papa João Paulo II sempre manifestou pelas artes foi alimentando a veneração que o tenor dedicou ao Sumo Pontífice. “O Santo Padre era um fenómeno em tudo. Ele adorava música. Foi quem instituiu os concertos da Sala Paulo VI pelo Natal e pela Páscoa. Convidava os maiores intérpretes, que dirigiam grandes óperas na Basílica de São Pedro. O Papa era muito afinado e tinha uma voz teatral. Não é à toa que gravou um CD. A música ocupou grande parte da sua vida e, em jovem, esteve para ser actor”, considera.

Para próximo Papa, o tenor siciliano garante não ter preferência de nacionalidade: “Gostava apenas que o Santo Padre seja um exemplo de continuação. Não interessa que venha de África ou de qualquer outro país ou continente”. Apesar de não assumir preferências, Giovanni D’Amore, o tenor que escolheu Portugal para morar, confessa que o cardeal de Lisboa seria um predilecto. “D. José Policarpo, que conheci numa viagem de Milão para Palermo, seria uma excelente escolha.

CRESCER COM A MÚSICA

Giovanni D’Amore nasceu na Sicília, em Taormina, a 18 de Abril de 1965. A mesma aldeia que Francis Ford Coppola escolheu para abrir as cenas do memorável ‘O Padrinho’. A música foi quase uma herança. O pai era um excelente cantor e guitarrista siciliano, assim como os seus antepassados. Mas não permaneceu muito tempo na terra natal. Passou a vida a acompanhar a família que, por motivos profissionais, saltava de terra em terra. “Como os ciganos”, diz ele. Aos dois anos e meio, Giovanni já cantarolava. “Nunca gostei de brincar com carros e bonecos. Sempre procurei instrumentos e, às vezes, subia a uma cadeira e imaginava-me a dirigir uma orquestra”, conta. As brincadeiras de miúdo tornaram-se realidade. Para Giovanni D’Amore não havia outro caminho possível a não ser a música. Sob direcção do maestro Piero Guarino, Giovanni D’Amore aprendeu piano, violino, composição e percursão, no Conservatório de Parma. Neste tempo, apresentou inúmeros concertos pelo país e pela Europa, como elemento do Coro da Universidade. Foi também aqui que começou a sua ligação a Portugal. Dos intercâmbios com o coro da Universidade de Coimbra nasceram amizades lusas, entre as quais, a mulher com quem é casado há dois anos e o motivo pelo qual trocou Itália por Coimbra. “Foi o amor que me trouxe para Portugal, embora já visitasse o País desde 1993. Casei em Fátima”, refere. Mais tarde, estudou para tenor, em Bolonha e em Arcore, perto de Milão.

Um dos trabalhos mais importantes que desenvolveu no País foi o espectáculo de homenagem à diva do Fado, do qual nasceu o CD ‘Flores para Amália’. “Nada acontece ao acaso. Um dia, aquela que é hoje minha mulher telefonou-me a dizer se estava interessado em vir cantar ao programa ‘Praça da Alegria’. Como sei que se vê no mundo inteiro, não hesitei em aceitar. Cantei três temas. Ao terminar o último e quando já estava a arrumar as minhas coisas para ir embora, a produção chama-me para atender um telefonema. Era Amália. Queria saber de onde vinha aquela voz que tinha ouvido e quem eu era. Conheci-a depois pessoalmente e tornamo-nos amigos.” Amália morreu a 6 Outubro de 1999. Durante a homenagem no Panteão Nacional, nasceu a ideia do álbum ‘Flores para Amália’. “Ouvi-a pela primeira vez quando tinha quatro anos. Na minha casa, tínhamos um disco com os temas ‘Abril em Portugal’ e ‘Lágrima’. Adorava Amália e decorava as letras muito facilmente.” Seriam esses e outros temas que Giovanni D’Amore levaria à sua cidade de estudante, Parma, numa homenagem à diva do fado, em 2001. “Para mim, Amália não morreu. A sua voz é eterna, imortal. As pessoas podem partir, mas fica sempre algo delas. Quando canto, sinto-me acompanhado por ela”, revela. Habituado a mostrar a sua voz ao País, o tenor estará no dia 17 de Abril, em Oliveira de Azeméis.