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A companheira de Jesus

Discípula ou amante, apóstola ou esposa? Historiadores e teólogos discutem o papel de Madalena no cristianismo

Por Federico Mengozzi e Ivan Padilla

''E a companheira do Salvador é Maria Madalena. Cristo amava-a mais do que a todos os discípulos e costumava beijá-la com freqüência na boca. O restante dos discípulos ofendia-se com isso e expressava sua desaprovação. Diziam a Ele: 'Por que Tu a amas mais do que a nós todos?'.'' O trecho pertence a O Código Da Vinci, romance policial do americano Dan Brown que já vendeu 15 milhões de exemplares, 400 mil só no Brasil, e em breve chegará aos cinemas, sob a direção de Ron Howard, com Tom Hanks como protagonista. É a coqueluche da temporada. Por sua iconoclastia, ou por tentar subverter verdades estabelecidas, reabre uma ferida nas tradições cristãs ao levantar a discussão sobre Jesus e sua relação com Maria Madalena.

Na trama fictícia, o professor de simbologia Robert Langdon e a criptógrafa Sophie Neveu decifram o Santo Graal. Detalhe: Sophie seria descendente direta de Jesus Cristo, que teria sido casado com Maria Madalena, mãe de sua filha, Sara. Para escapar da perseguição aos cristãos, elas teriam fugido para a França e dado origem à dinastia dos reis merovíngios. O Santo Graal também não seria o cálice da última ceia, mas um conjunto de evidências que comprovariam a tese do casamento entre Cristo e Madalena. No best-seller, não é o professor, mas seu amigo, o historiador Leigh Teabing, autoridade na história do Santo Graal, quem quer divulgar a bombástica notícia: durante 2 mil anos, a Igreja escondeu a verdade sobre Jesus e Maria Madalena.

As linhas mestras do romance são extraídas do livro-reportagem O Santo Graal e a Linhagem Sagrada, de Michael Baigent, Richard Leigh e Henry Lincoln, que fez muito barulho nos anos 80. Para que não se pense que as semelhanças são meras coincidências, basta dizer que o nome do personagem Leigh Teabing homenageia os dois primeiros autores - Teabing é anagrama de Baigent - e que o trio está movendo um processo de plágio contra Brown. Em seu livro, que gerou muita polêmica, eles estabeleciam a ligação entre os cavaleiros templários e o Priorado de Sião, grupo que dizia proteger a ä linhagem sagrada dos descendentes de Jesus e Madalena. As informações sobre o grupo foram colhidas em documentos depositados na Biblioteca Nacional de Paris nas décadas de 50 e 60. Esses textos provavelmente foram deixados por um certo Pierre Plantard, que dizia ser descendente dos merovíngios (portanto, segundo a própria tese, descendente de Jesus) e ocupar o cargo de grão-mestre do Priorado - uma fraude sem maiores conseqüências.

Dan Brown afirma, no início do livro, que ''todas as descrições de obras de arte, arquitetura, documentos e rituais secretos neste romance correspondem rigorosamente à realidade''. Mas obras lançadas na esteira do sucesso de O Código contestam os fatos. O polêmico trecho do livro de Brown que fala do amor entre Jesus e Madalena teria origem no evangelho de Filipe, um dos evangelhos gnósticos, ou não-canônicos, encontrados em Nag Hammadi, no Egito, em 1945. Para Darrell L. Bock, professor do Seminário Teológico de Dallas, nos Estados Unidos, e autor de Quebrando O Código Da Vinci, o original tem lacunas e só traz a inicial (no alfabeto copta) da palavra ''boca''. ''O texto está fragmentado e diz: 'E a companheira de (...) Maria Madalena, (...) a ela mais do que a (...) os discípulos e (...) beijá-la (...) na b(...)'.'' Ainda que Jesus a beijasse, diz, o documento não indica uma situação sexualizada.

A companheira de Jesus - continuação

Maria Madalena é citada em diversas passagens dos Evangelhos de Marcos, Mateus, Lucas e João, no Novo Testamento, e está presente nos momentos mais marcantes da vida de Jesus, como a Paixão e a Ressurreição. É a mulher que mais aparece nos Evangelhos - 17 vezes, mais do que Maria, mãe de Jesus. Nenhum trecho, no entanto, permite concluir que houve relação carnal entre eles. Tudo é questão de interpretação. De acordo com a arqueóloga Fernanda de Camargo-Moro, autora de Arqueologia de Madalena - Uma Busca Histórica da Companheira de Jesus, a palavra grega usada para as mulheres em geral - diakonein - não foi empregada por Filipe, em seu evangelho, ao se referir a ela. Para Maria Madalena, o termo utilizado foi koinonos, que significa ''companheira''.

Dan Brown afirma, por meio do personagem Teabing, que a palavra ''companheira'' significava, em determinado contexto, ''esposa'' em aramaico. O evangelho de Filipe, porém, foi escrito em copta, com empréstimos do grego. Na língua dos helenos, koinonos também pode significar ''irmã'', no sentido espiritual. Pode ser ainda ''esposa'', embora a palavra grega mais comum para essa condição seja gyné. ''Os textos usam uma palavra que significa companheira fundamental, total, integrada. A palavra 'casada' em relação a Jesus é geralmente usada nos romances de ficção, feitos com pesquisas rasas, sobretudo coladas de textos anteriores'', afirma Fernanda de Camargo-Moro.

No evangelho de Maria Madalena, também encontrado em Nag Hammadi, há o confronto de Pedro em relação a Madalena. ''Por que teria ele falado em particular com uma mulher (...)? Devemos todos mudar de opinião e escutá-la?'' Encontram-se referências a ela em outros textos apócrifos, que serviram para a divulgação do cristianismo nos primeiros séculos, mas foram proibidos pelo Concílio de Nicéia, no ano 325. De acordo com Fernanda de Camargo-Moro, a má interpretação dos textos, muitas vezes devido a falhas de tradução, ajudou a formar uma imagem negativa. Madalena, a ''mulher da qual saíram sete demônios'', segundo o Evangelho de Lucas, ganhou a imagem de uma prostituta que foi purificada por Cristo. Mulher cheia de pecados, passou a representar o arquétipo feminino tradicional, a transmissora do pecado original, que, depois de curada, teria passado sua vida em arrependimento. Não há menção a Madalena como prostituta arrependida na Bíblia. A imagem provavelmente se originou num discurso do papa Gregório I (540-604), quando a Igreja estava em expansão e era importante divulgar a necessidade de combater o pecado. Madalena seria, portanto, um exemplo de fé e penitência.

Teabing, o personagem de Brown, a certa altura diz: ''Jesus como homem casado faz mais sentido do que a versão bíblica''. E justifica, explicando que o decoro social da época praticamente proibia que um judeu fosse solteiro. ''Se Jesus não fosse casado, os Evangelhos mencionariam o fato.'' Em Decodificando Da Vinci, a americana Amy Welborn, mestre em História da Igreja pela Universidade Vanderbilt, em Nashville, nos Estados Unidos, escreve que, no século I, muitos homens devotados a Deus eram solteiros. Os exemplos, do profeta Jeremias ao apóstolo Paulo, são muitos. Em Carta aos Coríntios, Paulo se refere às mulheres de outros apóstolos, mas não de Jesus.

A polêmica em torno de Jesus e Madalena é cíclica. A Última Tentação de Cristo, de Martin Scorsese, de 1988, incendiou os ânimos dos fundamentalistas, para quem os textos sagrados devem ser entendidos ao pé da letra. Baseado no livro A Última Tentação, de Nikos Kazantzakis, o filme mostra um Jesus humanizado, com sentimentos como medo e frustração. Angustiado por desempenhar o papel de Messias, ele é tentado a imaginar, durante a crucificação, como seria sua vida na pele de um homem comum. Durante o sonho, ele se casa com Maria Madalena, fica viúvo, casa-se pela segunda vez e comete adultério. Quando desperta do sonho, decide assumir seu destino e morrer na cruz. Ex-seminarista, Scorsese afirmou na ocasião que fizera o filme para se aproximar de Deus.

A companheira de Jesus - continuação

Segundo o teólogo batista Jorge Pinheiro, da Faculdade de Teologia Batista, de São Paulo, discute-se o assunto desde o Renascimento. Algumas fontes dizem que as bodas de Caná, episódio em que Jesus realiza seu primeiro milagre, transformando água em vinho, seriam, na verdade, a celebração de seu próprio casamento. ''Os evangelhos gnósticos retratam Jesus como um espírito superior, mas que era um homem como qualquer um de nós. Se Jesus foi o Deus encarnado, um ser humano integral, teve inclusive sexualidade'', afirma.

O teólogo Afonso Soares, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, também afirma que a discussão é antiga e foi se propagando a partir da publicação dos evangelhos gnósticos. ''Pela lógica, eu diria que Jesus era solteiro. Naquele momento, ele representava uma ideologia inovadora, que ameaçava o poder do Templo e o poder romano'', afirma. ''Jesus sabia que não teria vida longa com inimigos assim e não constituiria família.'' Para Soares, há até um sentido de união conjugal na relação entre Jesus e Madalena, mas no sentido religioso - como se a Igreja nascente, representada por ela, se casasse com Jesus ressuscitado. ''A descendência de Jesus sempre foi entendida em termos místicos, isto é, 'descende' dele todo aquele que se torna seu discípulo. Do ponto de vista moral e dogmático, não haveria problema se ele tivesse tido mulher e descendência'', diz.

Para John Dominic Crossan, professor de Estudos Bíblicos da DePaul University, em Chicago, nos Estados Unidos, Jesus é uma das figuras mais bem documentadas da História Antiga. O problema é desvendar a complexidade das fontes. Para estudar o tema, ele utiliza métodos da Antropologia, da História e da Análise Literária. ''Ninguém jamais vai encontrar evidências diretas de sua existência, como um pedaço da cruz ou a coroa de espinhos. Os achados precisam ser decifrados'', afirma o arqueólogo André Chevitarese, da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Escavações locais, somadas aos escritos do historiador Flávio Josefo no século I, permitem saber que Magdala, a cidade da Galiléia onde nasceu Madalena, era um ''pólo industrial'', onde se concentravam diversos artesãos e manufaturas. Outras fontes dizem que seu pai era Teófilo, um comerciante de bálsamos na rota comercial entre a Peréia, a Judéia e a Galiléia.

A polêmica em torno da relação de Jesus e Madalena amplia a discussão sobre o papel da mulher na Igreja. O celibato não foi obrigatório durante mais de um milênio, até o Concílio de Latrão, no século XII. Existem igrejas católicas como a armênia, a melquita e a ucraniana que não exigem a abstinência sexual dos padres. Uma questão importante neste debate é o crescimento da figura de Madalena e sua colocação em pé de igualdade aos demais apóstolos. Em 1995, o papa João Paulo II, para impedir maiores discussões sobre o sacerdócio feminino, referiu-se ao ''exemplo de Cristo, atestado pelas Sagradas Escrituras, que escolheu seus apóstolos somente entre os homens''. Esse argumento cai diante de uma Madalena fortalecida, que atende a setores que reivindicam para a mulher um papel mais importante na hierarquia católica. Portanto, o ressurgimento de Madalena nos últimos anos, em dezenas de livros, muitos deles romances, vai além da trama de O Código Da Vinci e se vincula mais à evolução do poder político.

Novas interpretações ajudaram a mudar a imagem da Madalena arrependida a partir do século XX. De acordo com os Evangelhos, muitas mulheres deixaram suas famílias para se juntar a Jesus. Também ajudavam o grupo com seus bens materiais. Isso demonstra uma emancipação feminina financeira e familiar rara naquele tempo, da qual Madalena se tornou símbolo. Ela também é referência do movimento Women Priests, que tem como bandeira a instituição do ordenamento para as mulheres. ''Existe um reconhecimento de seu papel como companheira de Jesus e uma das estruturadoras do cristianismo'', afirma Fernanda de Camargo-Moro. A Igreja, tradicionalmente machista, estaria preparada para aceitar novos marinheiros conduzindo a barca de Pedro? Para o papa, não é o momento. É esta, mais do que a ameaça a uma entidade de 2 mil anos, a verdadeira questão que o best-seller, há meses em primeiro na lista dos mais vendidos, levanta.