A morte de um antifascista
Por Florence Carboni
No dia 18 de setembro, faleceu Florestano Vancini, aos 82 anos. O célebre diretor de cinema italiano nasceu na cidade de Ferrara, em 1926, e se destacou pelo engajamento político anti-fascista. Após alguns documentários e colaboração com os famosos diretores Mario Soldati (1906-1999) e Valerio Zurlini (1926-1982), realizou em 1966 seu primeiro filme, "La lunga notte del ’43", inspirado em conto do livro ‘Cinque storie ferraresi’, do escritor e roteirista anti-fascista Giorgio Bassani (1916-2000), que nasceu em Bolonha, mas que, como Vancini, viveu desde a infância em Ferrara, onde são ambientados alguns de seus romances – entre eles, Gli occhiali d’oro e Il giardino dei Finzi Contini.
Realizado com um roteiro de Ennio De Concini (1923- ) e Pier Paolo Pasolini (1922-1975), "La lunga notte del '43" narra o massacre, em 14 de dezembro de 1943, de onze resistentes pelas brigadas fascistas da República de Salò. No filme, Vancini registra visão da história fina e profunda, quase profética: na cena final, após o fim do conflito, o mussolinista responsável pelo massacre dos combatentes antifascistas volta à cidade e passa a ser respeitado e admirado, como se nada tivesse ocorrido.
Vancini dirigiu inúmeros outros filmes: "La banda Casaroli" (1962), que conta a história de um famoso bandido bolonhês; "La calda vita" (1963); "Le stagioni del nostro amore" (1965), que obteve o Prêmio da Crítica no Festival de Berlim; "I lunghi giorni della vendetta" (1967), western à italiana, que dirigiu com o pseudônimo de Stan Vance, com a participação do famoso ator Giuliano Gemma, também protagonista em outros dois filmes do mesmo diretor - "Violenza al sole – Un'estate in quattro" (1969) e "La Baraonda" (1980). Nos anos 1970, Vancini dirigiu também "La violenza, quinto potere" (1972), "Amore amaro" (1974), ambientado na Ferrara da época do fascismo e "Un dramma borghese" (1979). O último filme de Vancini, "E ridendo l’uccise", de 2005, foi ambientado na Ferrara do Renascimento.
Florestano Vancini ganhou fama graças a especialmente dois filmes históricos: "Bronte" (1972) e "Delitto Matteotti" (1973). "Bronte, cronaca di un massacro che i libri di storia non hanno raccontato", escrito por Vancini com Leonardo Sciascia (1921-1989), Nicola Badalucco (1929- ) e Fabio Carpi (1925- ), a partir de novela pouco conhecida de Giovanni Verga (Libertà), aborda a revolta camponesa siciliana contra o latifúndio, ocorrida em 1860 durante a unificação da Itália, e o seu massacre promovido pelo exército de Giuseppe Garibaldi, comandado por seu general Nino Bixio.
"Delitto Matteotti" narra o assassinato do deputado socialista e opositor intransigente de Mussolini, Giacomo Matteotti (1885-1924), logo após seu discurso na Câmara, em 1924, em que contestara a validade das eleições de abril em que a Lista Nazionale, formada por fascistas e liberais, obteve mais de 60% dos votos.
Nos anos 1980, o diretor realizou séries para a televisão, sem jamais abandonar seu comprometimento com a história dos oprimidos. São deles "La neve nel bicchiere" (1984), sobre a história de três gerações de camponeses da planície ferrarense, desde os últimos anos do século 19 até 1927; "La Piovra 2", segunda mini-série (em seis episódios – o primeiro foi lançado em 1986) da conhecida saga televisiva sobre a máfia, com o famoso ator Michele Placido; a série "Piazza di Spagna" (1993) e "Lettera dal Salvador" (1987), telefilm político sobre médico francês em El Salvador no período da guerra civil, com o ator Bruno Crémer (1929- ), para a série francesa "Médecins des hommes".
O nome de Florestano Vancini não costuma ser citado entre os grandes diretores italianos do pós-guerra. No entanto, ao lado de algumas produções menores, a maioria dos filmes de Vancini possui grande valor cinematográfico e altíssimo conteúdo ético. Sobretudo no contexto político singular que a Itália atravessa, onde, ao lado do quotidiano desrespeito à vida e aos direitos da população, assistimos a incessantes releituras revisionistas e enaltecedoras do trágico passado fascista por membros do próprio governo Berlusconi, os filmes de Vancini trazem alívio e esperança. A esperança de que, mesmo nesse mundo triste em que o capitalismo mais desumano parece triunfar, há seres humanos como Vancini, incorruptíveis e solidários. Seus filmes são instrumentos igualmente úteis para reiterar a certeza de que a dinâmica histórica é bem mais complexa do que alguns hoje querem fazer acreditar.
Florence Carboni, italiana, lingüista, é professora do curso de Letras da UFRGS. E-mail: fcarboni@via-rs.net . Texto originalmente publicado no Correio da Cidadania.