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Bertolucci fala do seu cinema e do brasileiro

Por Luiz Carlos Merten

Há um culto a Os Sonhadores, o novo filme de Bernardo Bertolucci, sobre o célebre Maio de 68. O filme conta a história de um garoto americano que, por amor ao cinema, aproxima-se de um casal de irmãos franceses, Isabelle e Theo. Os dois mantêm uma ligação incestuosa. Envolvem o estrangeiro nos jogos sexuais e cinematográficos. Os Sonhadores foi recebido a pedradas pela crítica francesa. A revista Cahiers despachou o filme numa meia dúzia de linhas. Na Itália, a crítica dividiu-se e Bertolucci recebeu duros ataques. No Brasil, Os Sonhadores foi o filme mais visto pelo público no Festival do Rio. Na Mostra Internacional de São Paulo o interesse das platéias repetiu-se.

Os Sonhadores estréia nos cinemas brasileiros. Por telefone, de Roma, Bertolucci confirma que o filme forma um díptico com Beleza Roubada, de 1996. Os dois tratam de Maio de 68, mesmo que, em Beleza Roubada, o tema seja o rito de passagem da jovem interpretada por Liv Tyler. Naquele filme, Jeremy Irons está morrendo de câncer e ele representa os sonhos da geração de Maio de 68. "Tenho a sensação de que foi por isso que quis tanto fazer Os Sonhadores´. Para oferecer um contraponto à morte de Jeremy. Acho que ela poderia sedimentar essa idéia tão difundida de que Maio de 68 foi um fracasso." O diretor não concorda com essa avaliação - "Maio de 68 pode não ter instaurado a revolução com que sonhávamos, mas resultou numa mudança profunda dos costumes." Não só dos costumes. Bertolucci explica por que acha que até o fato de o Brasil ser presidido por um antigo metalúrgico, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, tem a ver com o espírito de Maio de 68.

Para o cineasta, Os Sonhadores tornou-se um filme necessário porque ele sentiu que a juventude estava desinformada e perdendo todo conhecimento sobre um período que foi rico e cujos desdobramentos ainda não cessaram. "Os poderosos tentam convencer-nos de que as ideologias morreram com o comunismo, mas não é verdade. Sem ideologia, não há utopia. Sem utopia, não existe esperança e, sem ela, não existe futuro", diz o diretor, que se considera, hoje como ontem, um sonhador. Bertolucci explica por que fez de um dos vértices do triângulo um americano em Paris. O americano, talvez, seja o personagem mais forte de Os Sonhadores. Encarna uma consciência da violência e os limites que o incestuoso (e decadente) casal europeu não possui. Isso pode provocar polêmica se o filme for visto só na perspectiva atual, num mundo dominado pelo presidente George W. Bush e o que ele representa. "Maio de 68 foi isso - uma mistura de decadência e revolução", afirma o diretor. Ele, falando para o Brasil, confessa, mais uma vez, a admiração pelo Cinema Novo. Bertolucci ama não apenas o arauto do movimento cinematográfico que surgiu no começo dos anos 1960, Glauber Rocha. Gosta muito de Paulo César Saraceni (Porto das Caixas) e Leon Hirszman (A Falecida). Como ele diz - "Sou viciado no cinema brasileiro."

Por que um filme sobre Maio de 68, justamente agora?

Porque é o momento de lembrar quão maravilhosa foi aquela experiência que vivemos há menos de 40 anos. Em termos de história da humanidade, o prazo é mínimo, até irrelevante, mas o espírito de Maio começava a se desvanecer e isso, para mim, era uma traição a tudo aquilo pelo que lutamos, ou no que acreditávamos. Quando se chega a uma certa idade, como eu (NR: Bertolucci tem 63 anos), a gente se volta para a juventude como um tesouro. Não tento recuperar o tempo perdido, mas mostrar aos jovens atuais, que parecem nada mais saber sobre Maio de 68, o que foi aquela época e por que se tornou mítica.

No Brasil, Tetê Moraes faz um documentário chamado O Sol, sobre um jornal alternativo daquela época, e entrevista várias pessoas que destacam o quanto Maio de 68 foi importante para elas e o que significou. Um dos entrevistados, Zuenir Ventura, diz que Maio de 68 representa algo tão forte que nunca morrerá, mesmo que venha a permanecer na lembrança de poucos.

Pois eu queria multiplicar esses poucos. Na Itália, é a mesma coisa. Existem jovens que combatem a globalização e acreditam que um novo mundo é possível, desde que lutemos por ele. Nem essa garotada sabia direito o que foi Maio de 68. Resolvi fazer o filme para lembrar, sem nostalgia nem tristeza. Quando Os Sonhadores estreou na Itália desencadeou uma polêmica. Muitos críticos e até pensadores da Universidade escreveram que eu havia feito o filme errado, que Maio de 68 foi um fracasso e eu não deixo isso claro. Como podem falar em fracasso? Maio de 68 pode não ter selado a aliança dos estudantes com os operários, que acreditávamos fundamental para mudar o mundo, mas muita coisa mudou depois daquele ano, daquele mês e por isso ele se tornou mítico. Com Maio de 68, sedimentou-se uma revolução dos comportamentos que vinha sendo esboçada ao longo de toda aquela década. Durante os protestos de Maio, os jovens beijavam-se nas ruas com verdadeira licenciosidade. A revolução política e a sexual andavam juntas. E aquilo mudou muita coisa. Antes de Maio de 68, beijar-se na rua ou praticar atos que pudessem ser considerados obscenos podia dar cadeia na Itália. Depois... O mundo mudou muito em termos de comportamento e até consciência.

Mas não conseguimos fazer a revolução que tanto amávamos, para pegar carona no título do filme famoso de seu compatriota Ettore Scola (NR: Nós Que Nos Amávamos Tanto). 

Houve uma revolução, mas não a política. E essa revolução dos costumes não pode ser subestimada porque as coisas não seguiram o rumo que queríamos. O fracasso que se atribui a Maio de 68 atirou muita gente na clandestinidade e na luta armada. O terrorismo político dos anos 1970 gerou uma reação contrária na sociedade que alicerçou o projeto dos poderosos. A repressão, a alienação, tudo isso vem no bojo ou como conseqüência de Maio de 68. Creio que é tempo de analisaremos tudo isso em profundidade. Espero estar contribuindo com Os Sonhadores.

No começo de sua carreira, os críticos costumavam defini-lo como uma soma de Luchino Visconti e Jean-Luc Godard. 

E eu tenho a impressão de que nunca fiz ou disse nada que justificasse isso. Foi como uma etiqueta que me colaram. Sempre gostei muito de Godard, da sua inquietação, do seu ímpeto revolucionário que mudou a linguagem do cinema. Visconti era um clássico, mas fez coisas extraordinárias no cinema, no teatro e na ópera.

Permita-me fazer uma confissão pessoal. Decorridos todos estes anos, "Rocco e Seus Irmãos" continua sendo o meu filme preferido. 

Respeito sua opinião, mas esta é uma diferença grande entre nós. Meu filme preferido é Romance na Itália (Viaggio in Italia), de Roberto Rossellini, que deu início ao cinema moderno. Todos começamos ali. Todos os autores modernos de alguma forma são filhos de Rossellini. Meu outro favorito é Francisco, Arauto de Deus, também dele.

Mas eu pensava em Godard a propósito de "Os Sonhadores". Godard antecipou Maio de 68 em "A Chinesa", por meio daqueles jovens encerrados dentro de um apartamento, como o trio do seu filme. 

Se você quer saber se A Chinesa foi uma referência... Sim e não. Não se pode ignorar que houve esse filme e que existem semelhanças. Mas não foi algo consciente. Me pareceu interessante mostrar esses jovens transgredindo, especialmente no sexo, e depois ganhando a rua. Foi assim que as coisas se deram. Conversávamos muito na escola, nos bares, nas casas de amigos. E então, um belo dia, toda aquela conversa ganhou a rua. 

Tenho de confessar-lhe uma coisa. Tenho uma implicância com o personagem de Matthew em "Os Sonhadores". Você está falando de Maio de 68, tudo bem, mas o que importa é a perspectiva atual e, hoje, fazer de um americano o herói da sua revolução é algo contra a corrente nesse mundo dominado por George W. Bush e o que ele representa. No seu filme, os jovens europeus, Theo e Isabelle, representam a decadência, com seus jogos incestuosos. E você coloca Matthew como objeto de desejo dos dois, algo como uma força positiva. 

Mas Maio de 68 foi exatamente isso uma soma de decadência e revolução. Queríamos mudar o mundo porque estava decadente, com suas estruturas morais e políticas apodrecidas. Veja acho que teria feito um filme panfletário se tivesse ignorado um personagem como Matthew. Estaria sendo infiel aos fatos. Havia, em Maio de 68, muitos americanos. E o movimento se expandiu de Paris para os campi das grandes universidades dos EUA. Naquela época, muitos jovens americanos fugiam para a Europa, o Canadá ou o Nepal para fugir da Guerra do Vietnã. E eles queimavam suas convocações e a bandeira americana em manifestações de rua. Talvez eu devesse ter mostrado isso. Conheci muitos Matthews. Eles eram pacifistas, contra a guerra. Praticavam a doutrina de paz e amor e depois viraram hippies, criando a contracultura, que foi uma verdadeira revolução nos EUA e levou, anos mais tarde, ao fim da guerra. 

Então, se entendo, você fez de Matthew um americano justamente para lembrar à juventude americana de hoje o que faziam os jovens de 40 anos. 

Pode-se dizer que sim, mas as coisas nunca são assim tão planejadas. Nunca digo vou mostrar isso dessa maneira para que as pessoas reflitam sobre o que estou dizendo. Seria muito pretensioso de minha parte. É claro que quero dizer determinadas coisas, induzir o espectador a pensar em outras, mas o cinema, para mim, tem de ter uma base na realidade. E, se ele tem, os personagens terminam por adquirir vida própria e eu tenho de segui-los em suas tradições. 

É um filme de cinéfilo, cheio de referências. Você estava em Paris em Maio de 68? Participou dos protestos de atores e diretores contra a demissão de Henri Langlois, no episódio envolvendo a Cinemateca Francesa? 

Estava na Itália, mas acompanhava tudo pelos jornais e pela TV, que estava descobrindo a instantaneidade e transformava o mundo numa aldeia global. Telefonava todo dia para amigos meus na França. E, na Itália, as coisas também iriam explodir em seguida. Maio de 68 virou um protesto mundial. 

Em "Último Tango em Paris", você trancou Marlon Brando e Maria Schneider em outro apartamento e fez com que representassem ousadas cenas de sexo. No Brasil, o filme foi proibido pela censura do regime militar. Em "Os Sonhadores", voltam as cenas ousadas de sexo. Você mostra o trio de atores - Michael Pitt, Eva Green e Louis Garrel, em ousadas cenas de nu frontal... 

Foi para ser fiel ao espírito libertário de Maio de 68, não por voyeurismo, acredite. Disse que me interesso pelos jovens, mas não a esse ponto, de querer fazer pornografia com eles. E, depois, me pareceu que seria uma traição colocar a garota em nu frontal, como é comumente aceito no cinema, mas não os garotos. 

Tenho a impressão de que "Beleza Roubada", que você fez há oito anos, e "Os Sonhadores" formam um díptico sobre Maio de 68. Você começou pelo que seria o fracasso do movimento, na morte do personagem de Jeremy Irons. 

Exato e tenho a sensação de que foi isso que quis tanto fazer "Os Sonhadores". Para oferecer um contraponto à morte de Jeremy, que representava a geração de Maio de 68 naquele filme. 

Confesso que prefiro "Beleza Roubada", mas pode ser por um critério subjetivo. Tenho uma filha que se parece muito com a Liv Tyler de "Beleza Roubada".

Dê um beijo em sua filha por mim. E, olhe, fico contente que você goste de "Beleza Roubada". É dos meus filmes mais criticados, mas eu tenho certeza que não é uma das minhas obras menores. 

Na França, "Os Sonhadores" ganhou o título de "Os Inocentes", que não é a mesma coisa. 

Não me pergunte como nem por que isso aconteceu, porque não saberia responder-lhe. E não gosto desse título em francês. O filme já nasceu na minha cabeça como "Os Sonhadores". Era o que éramos. Queria justamente reviver aquele sonho. Há hoje um movimento para alienar a juventude, para nos transformar a todos em consumistas. Os poderosos incrustados na política e na mídia tentam nos fazer crer que as ideologias morreram, mas não é verdade. E se elas morreram precisamos ressuscitá-las. Não há utopia sem ideologia e se não existe utopia não há esperança. Se não há esperança, não há futuro. Como conviver num mundo sem futuro? Veja o caso de seu país. Vocês têm um presidente que foi operário. A Espanha também tem um governante que foi sapateiro. São coisas que confirmam o que lhe disse até agora. Maio de 68 não foi um fracasso. Deixou um legado. Vejo que existem muitas críticas ao governo Lula, mais, até, no Brasil do que no exterior. Ele não está fazendo o que as pessoas que o elegeram esperavam. Mas é muito difícil. O governo Lula é como uma ilha cercada por mares bravios por todos os lados. Cada conquista, por menor que seja, é importante, porque se dá no quadro de um mundo inteiro contrário a idéias de justiça social e harmonia. 

(Neste ponto, Bernardo Bertolucci quer saber do repórter de onde está falando. A entrevista foi realizada por telefone, em Brasília, durante a realização do Festival do Cinema Brasileiro.) . Ah, Brasília é uma cidade muito interessante. Estive aí há alguns anos, participando de uma homenagem a Gianni Amico, que era um grande amigo do cinema brasileiro na Itália. Devo confessar que o Cinema Novo sempre me encantou, pela força de muitas imagens que permanecem comigo. 

Qual os seus filmes e diretores preferidos do Cinema Novo? 

Gosto muito de Glauber Rocha, principalmente de Deus e o Diabo na Terra do Sol, mas também tenho uma queda por A Falecida, de Leon Hirszman, e por aquele filme do Paulo César sobre a mulher que mata o marido...

Paulo César Saraceni? O filme chama-se Porto das Caixas. Paulo César está aqui em Brasília. 

Quero então mandar um abraço para ele e para todos os diretores brasileiros que aprecio. São tantos. Na verdade, vou fazer uma confissão e ela não é exagerada, para ser simpático a você nem a seu país. A verdade é que sou viciado no cinema brasileiro.