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O tortei da mamma

Já faz mais de sete anos. São mais de 2.500 longos e penosos dias. E o pior de tudo é saber que nunca mais. Definitivamente nunca mais terei o prazer, nunca mais poderei saciar a minha gula, nunca mais se formará aquela salivação inconfundível na minha boca.

Passei a minha infância, a minha adolescência, boa parte da minha maturidade saboreando uma comida simples, porém muito, mas muito boa. Aos 45 anos, fui abrupta e violentamente podado, condenado a jamais voltar a ter a sensação de comer novamente o tortei feito pela minha mamma.

Vocês até podem achar que eu estou exagerando. Mas eu tenho testemunhas! Amigos, namoradas, pessoas iluminadas, privilegiadas por terem tido a oportunidade de saborear o tortei da minha mamma.

Na verdade, eu não a chamava de mamma e muito menos de mãe. Para mim, ela era a Dona Maria. Mulher brava e braba. Mal sabia assinar o nome, mas forjada no trabalho duro da colônia e, depois, comerciante na cidade, aprendera as vicissitudes da existência vivendo.

Cozinheira de mão cheia. Sabia fazer todas as especiarias preferidas da família como a polenta, as massas, a passarinhada (perdoem-me, mas nessa época eu ainda não era ecologicamente correto) e assim por diante. Porém, no tortei, ela se superava, era demais. Nunca mais provei algum tortei capaz de chegar minimamente próximo ao da Dona Maria, seja em sabor, em textura do molho, em consistência da massa, em recheio.

Dia de tortei, dia de festa. Primeiro, em uma mesa disposta no interior de um pequeno galpão junto aos fundos da casa, ela preparava a massa, como todas as demais feitas por ela, em casa. Depois, com um utensílio - uma rodinha cheia de dobras presa por um cabo - cortava a massa em pedaços retangulares.Vocês já ouviram falar em pastelão? Pois bem, o tamanho era quase o de um pastelão ou, então, de um pastel generoso.

É claro: ela não fazia uma coisa só a um só tempo. Antes já fizera a escolha minuciosa da moranga. Esse detalhe, acredito, era um dos segredos. A moranga tinha que ser sequinha. Ela conhecia apenas no olhar. Cozinhava a moranga sem a casca e  deixava os pedaços repousando, enquanto tratava de outras tarefas, com arrumar a mesa e cuidar o meu pai, para ele não começar a tomar vinho muito cedo.

O tempero do recheio da moranga. Certamente, esse era outro segredo. Lembro que ela colocava noz-moscada e mais alguma coisa, talvez manjerona. Possivelmente acrescentasse outros ingredientes, porém não recordo. Nunca me interessei, eu queria mesmo era comer.

 Depois, ela amassava a moranga e os temperos, fazia uma espécie de bolo. Vinha, então, a hora então de colocar o recheio na massa. Nacos daquela mistura mais ou menos marrom eram acondicionadas bem no meio dos retângulos.

Uma operação delicada era fechar, digamos, a poção, a unidade do tortei, algo que ela fazia com o mesmo utensílio de cortar a massa. Tinha de ser bem fechado. Não podia entrar ar.

Enquanto isso, em uma panela, agitava-se um molho vermelho, espesso, de tomate, cebolas e outras especiarias. Em outra panela, esmaltada, enorme, a água fervia, aguardando.

Com toda a delicadeza, ela colocava os tortei a cozinhar. Olhar atento, com uma espumadeira em riste na mão direita, ela observava a dança dos tortei na água quase borbulhante. Não podia ferver demais.

De repente, um grito de lamento: por alguma razão, a massa de um abrira-se. Ela ficava muito chateada, o retirava da panela, continuava a operação resmungando. A outra panela, com o molho, fervia ao lado, na chapa do fogão a lenha. E, em outra panela de ferro, uma jovem galinha, que tivera sua vida abreviada, cozinhava exalando um cheiro delicioso também.

A mesa já estava posta. Então, aquela gritaria, "allora andiamo, andiamo, andiamo mangiare antes que esfrie", agitava-se Dona Maria. Os tortei vinham dispostos em uma travessa. Colocada sobre a mesa, imediatamente recebia um jorro de molho, fumegante.

Um balde de queijo parmesão, no meio da mesa, aguardava o momento de ser chafurdado sem parar. Em canto, outra travessa enorme com saladas, desde radiche, agrião, cebola em conserva, tomate, chuchu. Por fim, chegava a panela com a galinha.

Sinceramente, eu não preocupava com a galinha, com a salada. Eu queria mesmo era o tortei. Pegava um por um, derramava mais molho e o cobria de queijo para, então, devorá-lo. Comia uns dez. Ou mais.

Dona Maria morreu aos 88 anos. Sinto enormemente a sua falta. Seus gritos exaltados, a sua força e determinação, a sua fé, o seu incansável otimismo. Mas, confesso, não posso esquecer do tortei que ela fazia.
 
O meu pai, quando eu comia tortei, me chamava de lúbio, algo que significa guloso. Eu pouco me importava.

Agora, tudo acabou. Sinto um desespero, uma certa ânsia, uma ausência, e não vislumbro qualquer solução. Pois tortei como o da Dona Maria, nunca mais!

(O filho da Dona Maria)