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Saga do imigrante Francesco Bajotto

A família de Giacomo Filippo Bajotto e Lucia di Biaggi amanheceu em festa naquele dia primaveril de 01 de maio de 1844 na localidade veneta de Molvena. Acabava de nascer na humilde casa de pedra situada no meio do pequeno “campi” o primeiro filho homem que veio fazer companhia para a maninha Maria Maddalena. O nome escolhido foi Francesco, o santo de devoção do casal. E, como bons católicos, já no dia seguinte levaram-no a pia batismal onde o padre da “Parrochia San Zeno” realizou a cerimônia e fez os assentamentos no livro “dal registro dei battesimi” para marcar a vinda ao mundo de mais um cristão.

Giacomo, que nasceu na “comuna” de Lentiai, “frazione” de Boschi di Calderù, em 01 de maio de 1808, rememorava com saudade o seu “paese” belunes às margens do rio Piave que, no degelo alpino, descia impetuoso levando tudo de roldão. Ficava imaginando como estava suportando os tempos de penúria no campo a sua família composta pelo pai Giovanni, a mãe Giacoma Begnù, a irmã mais velha Giovanna e seus irmãos mais novos Giovanni e Nicolò com os quais passara uma infância tão alegre. Ah! Quantas recordações. Quantas saudades do dia 24 de janeiro de cada ano. Neste dia o almoço era sempre melhorado para lembrar a data do aniversário de casamento no “Duomo” de Lentiai em 1805. Lembrava também que viera solteiro para Maróstica e, por um capricho do destino, conheceu Lucia, nascida em Molvena no dia 31 de agosto de 1817 e aí casara no “Duomo” em 25 de novembro de 1840.

O que Giacomo não imaginava é que em Maróstica o pároco grafou o seu sobrenome como oriundo da família Bajotto. Acontece que o seu pai, Francesco, o seu avô Giovanni, e o seu bisavô Domenico estavam registrados na paróquia de Lentiai como da família Bajocco. Nossa! Que confusão ele arrumou para a posteridade. E, para complicar ainda mais, no Brasil surgiram duas variantes principais: Baiotto e Baggiotto. Nada a ver com a família Bajocco original.

Mudando de assunto. Naquele tempo a vida dos agricultores vênetos, chamados contadini, era muito sacrificada. A Itália ainda não existia como nação. A Áustria dominava com mão de ferro toda a região alpina e a maior parte da imensa Planície Padana. Um de seus dispositivos legais previa a possibilidade de recrutar nos territórios ocupados todo o filho homem de idade entre 19 e 30 anos para lutar em suas fileiras. Isto era profundamente desagradável para a população veneta. Obviamente não viam lógica em se engajar na luta para defender os interesses do invasor; em deslocar o que de melhor havia em sua comunidade para morrer em frentes de batalhas espalhadas por toda a Europa. Esse procedimento esfacelava as famílias. E a família, para o povo vêneto, é a coisa mais sagrada que existe.

Por outro lado, o “risorgimento” ensaiava seus primeiros passos visando mobilizar as massas para um levante. Acontece que a gênese desse movimento era anticlerical e se apoiava nas idéias do movimento clandestino conhecido como “carbonários”, uma derivação da maçonaria. Outro dilema para a população regional que professava com fervor a religião católica.

E assim os anos iam se passando e a situação dos aldeões se agravando. Não havia perspectiva de melhora. A rotina seguia o seu curso: nascer, lutar, casar, lutar, novos nascimentos, novos casamentos, novas lutas ...

Ao longo dos anos, Francesco foi ganhando outros irmãos. Depois dele vieram Antonio, Giovanni Secondo, Gio Battista Luigi, Giacomo, Isidoro e o caçula Stefano Filippo.

Em outro “campi, próximo ao de Giacomo e Lucia, vivia Antonio Azzolin e sua esposa Maria Vier que viram nascer no dia 18 de agosto de 1844 uma filha que batizaram com o mesmo nome da mãe: Maria.

Ao que tudo indica, no seu devido tempo, Francesco também foi servir ao exército. Esta era a regra. Felizmente, na ocasião, não havia grande mobilização militar que justificasse um engajamento mais prolongado e ele foi liberado após cumprir o seu tempo de caserna. Então resolveu dar novo rumo a sua vida. Resolveu que já estava na hora de achar uma companheira e casar. Como simpatizasse muito com a vizinha Maria Azzolin, obedecendo aos costumes da época, solicitou aos pais para que entrassem em contato com a família da eleita para formalizarem o namoro.

Corria o ano de 1868. No dia 15 de novembro, após um breve namoro seguido do noivado, Francesco e Maria subiram ao altar da Paróquia de San Zeno para o enlace matrimonial. Tudo dentro dos parâmetros da época. O namoro se constituía em um período muito importante para o conhecimento mútuo. Para não dar oportunidade ao acaso, um familiar acompanhava sempre a moça tanto no âmbito familiar como nas saídas para a igreja, para o filó ou algum outro evento.

Uma vez casados, rezava a tradição, os noivos que não tivessem adquirido o seu próprio “campi” deveriam se juntar ao lar paterno. Daí a razão para a existência de amplas e centenárias casas de pedra dominando a paisagem rural italiana ainda nos dias de hoje.

Mas, Francesco e Maria, com a vinda dos filhos ficavam cada vez mais angustiados. Era muita gente para pouca terra. Os lotes rurais eram muito minguados: o tamanho padrão de um campi dificilmente ia além de um hectare. E na casa dos Bajotto, sem contar os outros familiares, em 1887, já havia mais 6 bocas: Giacomo (1870), Andréa/André (1874), Giuseppe (1878), Lucia (1879), Maria Rosália (1884) e Regina (1885). A situação ia se tornando dramática. O que fazer?

Bem! A família era unida. Católicos praticantes, não perdiam sequer uma das missas dominicais. O território vêneto da planície e do “prealpi”, a exemplo do que é ainda hoje, se encontrava muito povoado. Quase não havia distinção entre aglomerado urbano e lote rural. O que diferencia um do outro é que no núcleo urbano há um adensamento um pouco maior de casas para comportar o aparato político e religioso representado pela prefeitura (uffici dell'amministrazione comunale) e pela igreja.

Como já dissemos o clero em geral não comungava com a ideologia das autoridades civis. Estava desgostoso com os rumos do movimento que unificou os diversos reinos e outros enclaves políticos em um único país. O agora reino da Itália foi proclamado em 17 de março de 1861, em Turim, e Vitório Emanuel I foi levado ao trono. Acontece que para fazer frente aos gastos com a guerra da independência e para fazer funcionar a máquina administrativa o poder central baixou muitas leis que espoliavam ainda mais as populações menos favorecidas. Foi a massa crítica que faltava para deflagrar um movimento emigracionista sem precedentes. Note-se que a população já estava acostumada a migrar para os países visinhos em busca de trabalho por longos períodos. Só que agora o clero e os emissários de diversos países passaram a estimular a saída em definitivo para terras longínquas. Aliás, o próprio governo dominado pela “Sinistra Storica”, via com bons olhos o desafogo de populações das áreas rurais para se livrar dos encargos inerentes a sua função. Essa política iniciada com Agostino Depretis em 25 de março de 1876 perdurou até 10 de março de 1896 com Francesco Crespi. Foi o período mais dramático para a formação política da Itália unificada.

Dentro deste contexto histórico é que vamos encontrar a família Bajotto diante de um dilema terrível: emigrar ou continuar lutando para sobreviver. Até que em um domingo, ao ouvir a pregação do pároco, Francesco se decidiu vender tudo e se bandear para o continente sul americano, mais especificamente para o Brasil onde já havia conterrâneos emigrados para a região de Soturno (Nova Palma). Assim, no dia 18 de setembro de 1887 a família saiu de Molvena e foi até Bassano para tomar o trem que os levaria até Gênova.

Estamos no auge do movimento emigratório. Gênova era o principal porto norte italiano. Levas e mais levas de emigrantes deixavam o solo natal, o seu país, através das suas docas. Um porto muito movimentado. Nele as famílias podiam ver-se na contingência de esperar tanto semanas como meses a espera do seu navio. E os “contadini” ficavam desprotegidos a mercê de vigaristas e espertalhões de toda ordem que lhes roubavam as minguadas economias destinadas a começar nova vida no além-mar. Felizmente para Francesco o embarque se deu dentro de um tempo razoável e a viagem transcorreu dentro dos parâmetros de normalidade. Claro está que não se tratava de um cruzeiro de férias. Muitos sofrimentos e angústias acompanhavam os emigrantes. Além da alimentação deficiente em nutrientes básicos que provocavam o temido escorbuto e a pelagra, da acomodação precária, da superpopulação, sempre ocorriam algumas mortes no trajeto para assombrar os pobres passageiros. Tudo isto aconteceu também na viagem transoceânica a bordo do vapor Giulio Mazzino que aportou na Ilha das Flores, no Rio de Janeiro, em 03 de janeiro de 1888.

Considerando-se que o tempo médio de uma viagem Gênova – Rio de Janeiro em navio a vapor durava entre 30 a 45 dias, podemos deduzir que o embarque da família Bajotto se deu em fins de novembro.

Uma vez atracado o navio no píer do porto da então capital imperial brasileira os emigrantes eram normalmente conduzidos para a “Hospedaria dos Immigrantes na Ilha das Flores”. Com a família de Francesco não foi diferente. No livro Registro da Entrada dos Immigrantes nº 26, página 196 v, conservado no Arquivo Nacional, sob o nº de ordem 643 a 650 está tudo assentado.

Mas, havia pressa de chegar ao seu destino. Assim, já no dia 05/01/1888, juntamente com a maioria dos passageiros do Giulio Mazzino, embarcam no vapor “Rio Grande” rumo à Porto Alegre. Aí chegando, nova passagem pela chamada casa do imigrante, uma construção rústica onde hoje está a Praça da Harmonia, especialmente edificada para receber os recém chegados que se destinavam a povoar o interior da Província.

Segundo depoimentos da época, a primeira porção de cais era muito pequena e precária. Destinava-se a atracação dos barcos e ficava sujeita a constantes assoreamentos. Na realidade era uma simples doca destinada a atracação dos barcos que singravam as águas do Guaíba e seus formadores. Construído em pedra, na década de 1850, destinava-se a dar suporte logístico ao projetado Mercado Público inaugurado em 1869 naquele ponto do Guaíba. O restante da margem era um alagadiço que se prolongava até a primeira rua do traçado urbano, proximidades da atual rua da praia. O desembarque mais usual era feito em trapiches.

Aí permaneceram albergados por alguns dias. A etapa seguinte foi tomar um pequeno barco, subir o rio Jacuí até a localidade de Santo Amaro e embarcar no trem. Reporte-se que, neste local, em dezembro de 1877 começou a ser construída a ferrovia com destino a Uruguaiana. Já em 1883 os trilhos chegavam a Cachoeira do Sul e a 13 de outubro de 1885 era inaugurada a estação de Santa Maria. Portanto, quando Francesco e sua família se deslocaram rumo a Silveira Martins fazia pouco que essa rota bem mais cômoda havia sido disponibilizada aos imigrantes que se destinavam a povoar terras da IV Colônia Imperial. O desembarque era feito na Estação Colônia (hoje Camobi) e os restantes 15 km da viagem em morosas carretas tracionadas por juntas de bois contratadas pela Comissão de Terras. Mas, a sorte dos primeiros imigrantes era ainda pior. O percurso por carretas era feito desde as margens do rio Jacuí. Obviamente demandava um tempo considerável em campo aberto onde os velhos, as mulheres e as crianças sofriam muito já que ao longo do trajeto não existia uma estrutura mínima de apoio. Além de ter que enfrentar as intempéries a fome era uma constante. Os homens e os filhos maiores acompanhavam as carretas a pé. Tempos difíceis que apenas prenunciavam tempos ainda mais duros no meio da floresta.

A chegada na repartição administrativo do núcleo colonial de Silveira Martins aconteceu no dia 22 de janeiro de 1888. Ali foram feitos os registros regulamentares no livro "Ex-Colônia de Silveira Martins - Matrícula dos immigrantes chegados a esta ex-colônia depois de sua emancipação" na folha 104, sob os números 3508 a 3515. A ordem para os assentamentos começava sempre pelo “cabeça de casal” e seguia pela idade decrescente dos demais membros da família. Vamos encontrar: Baijotto, Francesco – 42 anos, Baijotto Maria – 42 anos, Baijotto Giacomo – 17 anos, Baijotto Andrea (André em italiano) – 14 anos, Baijotto Giuseppe – 11 anos, Baijotto Lucia – 8 anos, Baijotto Marietta – 5 anos e Baijotto Regina – 3 anos. Este livro se encontra hoje depositado no Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul com o nome de Codice SA-309. De imediato salta aos olhos incorreções na de grafia do nome e na idade dos imigrantes.

Não temos registro de onde permaneceu a família pelo tempo que mediou entre a chegada em Silveira Martins e a posse dos lotes rurais nºs 468 e 469, em 30 de agosto de 1888, com 220.000 m² cada um, na Linha 9 às margens da estrada que saindo de Soturno demandava para a Linha 11 antes de Pinhalzinho (depois Novo Paraíso). O mais provável é que tenham se albergado, ao menos por algum tempo, na casa de parentes das famílias Azzolin e Viero que já estavam estabelecidos em Linha 7. Os lotes eram dados em consignação já que só passavam definitivamente para a posse do consignatário depois de saldadas todas as prestações ajustadas. Isto porque, a partir de 20 de dezembro de 1879, vigorava o Decreto 7.750, que suprimia as vantagens oferecidas pelo Decreto 3.784, de 19 de janeiro de 1867. Em outras palavras, acabava com a imigração financiada e estabelecia a imigração espontânea cujas únicas benesses oficiais se resumiam no fornecimento do transporte dentro do país e no financiamento das glebas de terra cobertas por florestas.

Uma vez tomado posse dos seus lotes, um para Francesco e outro para Giacomo, a família tratou de construir um abrigo e produzir para pagar a dívida contraída com a Comissão de Terras. Foi uma luta árdua. Mas, com fé e perseverança venceram. Como o espaço era pouco para tanta gente repetiu-se o mesmo drama já vivido na Itália: a necessidade de novas separações e novos lugares para se fixar. Assim, um a um os filhos foram procurando seus espaços.

Giacomo foi que permaneceu no local por mais tempo. Ali nasceram todos os seus 19 filhos, fruto de três casamentos (Elisabetha Nodari, Francisca Rodrigues Padilha e Luiza Bortot). Andrea/André faleceu solteiro em 05 de junho de 1897. Giuseppe casou com Luíza Zaltron. Após o nascimento dos 11 filhos, por volta de 1918, mudou-se para Linha Santa Lúcia, então município de Ijuí e, posteriormente, para Três de Maio/RS onde faleceu e foi sepultado. Lucia, casou com Luiz Librelotto em 08 de agosto de 1898, em Linha 7. Por volta de 1905, a família transferiu-se com 4 filhos para a recém criada Colônia São Bento pertencente a colônia oficial de Sobradinho, então 5º Distrito de Soledade onde nasceram os outros 11 filhos. Maria Rosália (Marietta) é um enigma. O CPG (Centro de Pesquisas Genealógicas de Nova Palma) afirma que ela morreu no caminho entre Porto Alegre e Estação Colônia (Camobi – Santa Maria). Acontece que no livro de matrícula dos imigrantes chegados a Silveira Martins, como vimos acima, consta o nome dela e respectiva matrícula. Já a caçula Regina casou com o viúvo Luigi Cechin em 16 de fevereiro de 1916. Teve 3 filhos e recebeu de contra peso 7 enteados.

Consta na tradição oral da família que Francesco e Maria, após terem seus filhos crescidos e tomados cada um o seu próprio rumo, ficaram morando sozinhos em Nova Palma. Tendo o seu genro Luiz Librelotto ido visitá-los condoeu-se da situação de abandono em que se encontravam. Convidou-os, então, para morar em sua casa no Arroio Bonito (ex-Colônia São Bento), proximidades de Sobradinho/RS. Aí faleceram. Francesco em 16/10/1923 e Maria em 30/10/1927. Foram sepultados no cemitério da localidade, às margens da RS-481, onde até hoje podem ser visitadas as suas sepulturas.

Uma constatação curiosa: a maioria dos descendentes de Giacomo foi registrada como Baggiotto e suas variantes enquanto que os de Giuseppe assumiram a forma Baiotto, evidentemente mais adequada com a grafia original italiana onde o “j” (iota) é uma letra morta; porém, quando utilizada, assume o som de “i”. Presentemente a forma Bajotto está sendo utilizada para quem busca a dupla cidadania já que se faz necessário registrar a forma original no “Ufficio d´Anagrafe di Molvena”, base para provar o “jus sanguinis” italiano. Portanto, é Francesco Bajotto o legítimo e único patriarca conhecido até hoje que deu origem a todos os descendentes com os sobrenomes acima nominados que povoam os mais remotos rincões do Brasil.

E a nossa abordagem não seria completa se não fizéssemos uma abordagem comparativa das diversas grafias na terra de nossos antepassados. Atualmente o “site” Le Pagine Bianche (uma espécie de Lista Telefônica à italiana) não registra nenhum Baggiotto, 28 Baiotto mais concentrados na província de Turim e apenas uma família Bajotto na localidade de Bosconero, província de Turim. Já o cognome Baiocco (lembrar-se de Bajotto/Bajocco) registra 846 endereços espalhados em diversas regiões da Itália, inclusive em Lentiai.

Luiz Antônio Baggiotto
antoniobaggiotto@msn.com