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A Catequese da Ciência

2011 será lembrado como o ano de um dos maiores acontecimentos no mundo das artes: a confirmação feita pelo Dr. Robert Simon, da Universidade de Columbia, de uma pintura Salvator Mundi como sendo de autoria de Leonardo da Vinci. “Salvator” já era bem conhecida na literatura afim, porém, muito se polemizava sobre qual das várias versões seria a original - se é que houvesse uma dentre as que surgiam. Para todos os efeitos, considerava-se esta como das possíveis cinco obras ainda desaparecidas de Leonardo. Após as mais apuradas pesquisas dentre os melhores “pretendentes” em 2005, seguiu-se uma complexa restauração conduzida pela expert Dra.Dianne Modestini. Concluída dois anos depois, o óleo em madeira, de 65cm x 45cm, se revelava como de autoria do grande gênio da Renascença. Por ser muito superior aos demais em termos de técnica e tratamento, um corpo técnico decidiu creditá-la o status de original. O diretor da National Gallery de Londres, Nicholas Penny, se encarregara do processo de atribuição.

Significado e origens

Trata-se da representação de um tema corrente na iconografia cristã de desde a Idade Média (mas com raízes bem mais antigas): “Senhor dos Céus e da Terra”, pertence ao período mais tardio da produção artística de Da Vinci, em 1501, nos mostrando Cristo em plano americano; mão direita em gesto de bênção e, a outra, segurando uma órbita (aqui, uma esfera translúcida, com implicações platônicas e da cosmografia grega). A inusitada ausência de uma cruz ao topo do globo (e da opacidade deste) deve ser referência à astronomia de Aristóteles e Copérnico na concepção das “Esferas Celestiais”, estruturas por onde os astros se distribuíam. 

Seu primeiro registro data de 1649, sendo apontado parte da Coleção Real de Carlos I (Inglaterra), ao que entraria para a Coleção Cook (Doughty House, Richmond) em 1900 como um trabalho de Bernardino Luini (notório aluno de Leonardo). 

Em passagem pela Sotheby’s, a obra mudará de proprietário e ingressa no consórcio privado americano R.W.Chandler (Nova York) por US$ 80 milhões, quando seria repassada ao oligarca Dmitry Rybolovlev por US$ 127 milhões. Com isso, “Salvator”, juntamente com o retrato Ginevra de’ Benci, da National Gallery de Washington, chega a ser a segunda pintura de Leonardo radicada no Novo Mundo – ambas nos Estados Unidos. Entre novembro de 2011 e fevereiro de 2012, ainda participaria da mostra “Leonardo da Vinci: Pintor da Corte de Milão” na National Gallery de Londres, sem precedentes no gênero. 

Anunciada pela Christie’s de Nova York, a pintura vai a leilão em 15 de novembro de 2017, onde seria vendida por US$450,3 milhões (bem além da estimativa-base dos US$ 100 milhões), passando, assim, a ser a obra de arte mais cara na história dos arremates. O novo dono, segundo o The New York Times, é o príncipe saudita Bader bin Abdullah bin Mohammed bin Farhan al-Saud, um investidor nada relacionado ao mundo do colecionismo de Arte, mas um gigante nas áreas de telecomunicações (o Saudi Research and Marketing Group) e energia elétrica. 

Entretanto, segundo nota emitida pela embaixada árabe em Washington, a tal transação teria sido em nome do Departamento de Cultura e Turismo da exótica Abu Dhabi, onde Farhan al-Saud também é ministro. O que se suspeitava é que a filial do Museu do Louvre no emirado (inaugurada quatro dias antes do histórico evento) fosse revelada como destino final deste que era um dos últimos trabalhos de Leonardo ainda em mãos privadas. De fato, a teoria ganhou maior fôlego ao ser divulgada para 18 de setembro de 2018 a exposição (cancelada sem maiores explicações) de Salvator Mundi no Louvre em terras árabes. E, ainda que também esteja programada sua participação no Louvre de Paris entre outubro de 2019 e fevereiro de 2020 (por ocasião dos festejos dos 500 anos de morte de Leonardo), a ideia é que o quadro retorne a Abu Dhabi sem escalas: "Perdido e escondido por um longo tempo, a obra de Leonardo da Vinci será nosso presente para o mundo", confirmaria Mohammed Al Mubarak, do departamento de Cultura e Turismo da instituição. 

Autenticidade sob fogo

Como já esperado neste tipo de situação onde uma nova obra-prima é anunciada, não faltaram vozes contrárias à descoberta, e uma das maiores armas com que a crítica opositora se muniu para pôr em dúvidas até que ponto a atribuição possa ser validada é o estado de conservação bastante crítico da pintura somado a uma péssima restauração anterior. Costumo lidar com este tipo de argumento de forma bastante cartesiana: os profissionais envolvidos no propósito de fazer “Salvator” voltar à vida são um time de especialistas de extensos conhecimentos, experiência e altíssimo gabarito no que se propuseram a fazer. Dianne Modestini, do departamento de conservação da Kress Foundation e ex-conservadora plena do Metropolitan de Nova York, é uma das maiores autoridades mundiais na área, tendo já trabalhado para o Vaticano, na Capela Sistina, e possui em sua clientela instituições como a Frick Collection e o Toledo Museum of Art. Ou admitimos a integridade das instituições consideradas de excelência – até que nos provem o contrário - ou deveríamos reescrever boa parte da História da Arte apenas pelo critério de “terrorismo atributivo preventivo”. E a verdade dos fatos é que, até agora, nada se viu de assustador que ameaçasse a credibilidade desta restauração em particular. 

Por outro lado, temos a consideração por parte de alguns especialistas (em particular, a Dr.Carmen Bambach, do Metropolitan de Nova York, e Matthew Landrus, de Oxford), em atribuir a obra, não a Leonardo, mas a dois de seus seguidores mais próximos: Bernardino Luini e Giovanni Boltraffio. Sobre Luini, sabemos que foi um artista muito influenciado pelos também lombardos Bergognone, Bramantino e Bernardino Zenale. Ainda que muito próximo ao estilo de Da Vinci - após sua segunda estada em Milão entre 1506 e 1513 -, carece a Luini tanto o peculiar uso maestral do sfumato quanto a minúcia de detalhes orgânicos que tornaram-se marcas autorais de Leonardo, e que saltam aos olhos nesta versão em Abu Dhabi (aqui, os cachos no cabelo e, sobretudo, detalhes anatômicos na mão direita). De fato, Luini não é Da Vinci. Com Boltraffio, a situação não é diferente: suas personagens costumam se definir em rostos mais arredondados e formas roliças. O uso da cor é mais “líquido”, os elementos, mais gráficos, e seu traço não chega a trinta por cento da maturidade e da firmeza no linear etéreo do gênio. Ademais, pela época em que “Salvator” foi executado, Giovanni estava impregnado da visceralidade cromática de Perugino e Francia – o que distancia severamente da suavidade meditativa nesta obra. De fato, Boltraffio não é Da Vinci. Entrementes, se a saída for admitir que a pintura seja, pelo menos em parte, das mãos de Leonardo, tal “participação” seria tão marcante que lhe bastaria para uma atribuição direta, sem culpas. 

Seja como for, a presença de pentimentos (traços de alterações ou correções em certas partes da pintura feitas pelo próprio artista) foi, com certeza, um forte diferencial, determinante para que se chegasse a um veredito sobre a legitimidade e originalidade da versão em Abu Dhabi. Mas, como nem tudo são flores, num detalhe em particular, o da palma da mão esquerda que sustenta a órbita, o Professor emérito de Oxford, Martin Kemp, defende que o pentimento que ali se desnuda seja um alarme-falso: na verdade, trata-se de um ligeiro efeito visual sobre parte do calcanhar da mão (quando não em contato direto com a superfície do globo). O problema é que tal efeito se extende para fora dos limites da órbita e, consequentemente, deveria a mão parar de se “duplicar” – o que não ocorre. Logo, trata-se, mesmo, de um pentimento, única razão possível para o que ali se vê. Uma forte evidência a corroborar este pensamento paira sobre outra versão leonardesca de Salvator Mundi que vinha sendo tida como a definitiva até que a de Abu Dhabi surgisse. Refiro-me à cópia pertencente ao Museu Diocesano de Nápoles. Em 2007 tive a oportunidade de analisar diretamente a pintura - frequentemente atribuída a Marco d’Oggiono -, ao que pude confirmar a ausência do pentimento, sobretudo por cima do polegar esquerdo que se apóia na esfera: ou seja, se fosse camada de pele em Abu Dhabi (como Kemp quer), esta também deveria estar ali, em Nápoles. 

Resolvida a confusão, soma-se a isto o fato de ter se detectado na túnica de Jesus pigmentação de lapis lazuli, rocha de intenso azul, um dos materiais preferidos de Da Vinci. Também devemos levar em conta que, do contrário que algum detrator possa reivindicar em termos do suposto dinanismo “davinciano” aqui ausente (como quer o britânico Charles Hope, ex-diretor do Warburg Institute), a representação de Salvator Mundi é a versão de um ícone tradicional bizantino, uma arte estática, simbólica e profundamente austera, não devendo ser manipulada neste sentido. Na mesma via, a proposta do especialista em Leonardo, Jacques Franck, de que o retrato não possa ser “leonardesco” somente por não se apresentar mais “contorcido” tropeça nas próprias pernas. Ajustar o Cristo a uma perspectiva diferente (como na Mona Lisa), anularia a marca maior do selo “Salvator Mundi”: sua sacralidade protegida pela sobriedade. É possível também que a amarga experiência do pintor num episódio similar de encomenda lhe tenha servido de lição com a linguagem imagética do Sagrado (voltarei ao assunto mais adiante).

Já sabendo que para se cortar o Mal, devemos primeiro olhar para a raiz, eis que a própria casa de leilões responsável, a Christie’s, decide se levantar em autodefesa: “As razões para o consenso erudito incomumente uniforme de que a pintura seja um trabalho autoral de Leonardo são várias, incluindo a relação anteriormente mencionada da pintura com os dois desenhos preparatórios autografados no Castelo de Windsor; sua correspondência com a composição do Salvator Mundi na gravura de Wenceslaus Hollar de 1650; e sua declarada superioridade às mais de vinte versões conhecidas da composição.”

De todos os aspectos submetidos a tantos questionamentos, a polêmica maior estaria reservada para o pequeno elemento que também dá nome ao quadro: a esfera de cristal que não produz refração da luz, um fenômeno ótico natural que dificilmente teria escapado à percepção aguda de Da Vinci e sua obcecada minúcia. O biógrafo Walter Isaacson, por exemplo, defende que a não-distorção tenha sido "uma decisão consciente da parte de Leonardo". Segundo ele, o artista deve ter achado que uma representação mais precisa poderia roubar a cena e distrair o espectador do interesse real da pintura (o Messias), ou estivesse "sutilmente tentando transmitir um ato milagroso a Cristo e sua órbita". A meu ver, nem uma coisa nem outra... Para um melhor entendimento nas próximas considerações, recordo agora um trecho do estudo meu sobre a Mona Lisa de Isleworth publicado em 2013. Penso ser importante para trazer ao leitor uma ideia da revolução que foi o uso da técnica do sfumato no final do século XV e como isso foi decisivo na constituição de Salvator Mundi. 

Dianne Dwyer Modestini, no seu atelier em Manhattan (Marco Wolter-Radio France)

O milagroso Sfumato

Apesar de ter elevado a técnica conhecida como “sfumato” a um novo nível ao uni-la à pintura a óleo, Leonardo da Vinci não é seu criador, como comumente se considera. Esse termo italiano significa “tornado fumaça”, “esfumaçado”, “evaporado”, pois era o que acontecia com as marcas de pincéis sobre uma pintura: praticamente sumiam. O procedimento, na verdade, tem origem remota e imprecisa, cuja aplicação sistemática vem sendo demonstrada há milênios, sobretudo, no desenho e em técnicas a seco.

Com Da Vinci, o sfumato incluía uma nova técnica de glacis (não confundi-la com a de seus primeiros trabalhos, antes desta variante da “vitrificação”): a aplicação de uma camada de óleo misturado com uma quantidade mínima de pigmento colorido por sobre uma base branca no suporte da pintura. A partir disso, obtinha-se uma fina camada que reproduzia um tom colorido etéreo, evanescente. Tal procedimento permitia que a luz, ao atravessar esse “véu”, esbarrasse no fundo do suporte e refletisse para o expectador. Os vários tons de sombra nas obras tardias do artista, na verdade, devem-se às sucessivas aplicações dessas camadas. Apresentando cada uma delas pigmentação específica, umas sobre as outras, obtinha-se um efeito de constância vibrante.

Como dito, o peculiar processo surge apenas nas últimas obras do artista e, provavelmente, a Gioconda foi a primeira em que foi utilizado. Algumas evidências a esse respeito foram confirmadas pelas recentes descobertas sobre o quadro feitas pela especialista Mady Elias, do Centro Nacional de Pesquisa Científica da França, e pelo engenheiro Pascal Cotte da Lumiere Technology (digitalização multiespectral). Do ponto de vista artístico, era uma tarefa que dependia de carga extra de paciência e minúcia do autor. Por outro lado, por meio de suas mãos, evoluía-se para além de tudo que se tinha visto em termos de produção visual humana.

Artifício para criar efeitos de volume bem característico do Renascimento italiano, o sfumato é empregado na arte pós-medieval com o propósito de se criar uma atmosfera sobrenatural. Através dele, conferia-se à composição uma nova aura em um mundo acostumado à limitada imagética 2-D (na Pintura), que ainda era o tipo de representação mais “naturalista” dentre as artes por excelência. Essas representações de efeito bidimensional, ainda que resguardem signos e possuam seus próprios códigos, estavam bem longe de qualquer resultado mais realista que se quisesse considerar. Assim, não é muito difícil imaginar a reação daqueles que, graças ao sfumato, testemunharam a transição neste dramático capítulo na História da Imagem: o mesmo encantamento que vem acometendo as plateias em projeções 3-D ou I-Max em cinemas com tecnologia de última geração.

Considerando a filosofia e os interesses de Leonardo pelos estudos da Ótica, da Natureza e suas várias implicações dimensionais, pode-se encarar esse recurso como uma necessidade em sua produção artística. É importante também notarmos aqui aquelas anotações (no Itinerario) de De Beatis, por ocasião do encontro com Leonardo e a Gioconda em 1517. Referindo-se à “Gioconda” como “perfeita” e “parecendo estar viva”, o secretário descreve o momento como a descoberta de uma imagem fascinante, extraordinária. Para o público dos séculos XV-XVI, a impressão deve ter sido exatamente esta: a de um realismo apavorante. A partir de Leonardo, o problema da carência de “realismo” na Pintura encontra uma - até então - insuperável resposta.

E é aqui que o plano bidimensional se vê em crise, pois, juntamente com o uso da seção áurea, a figura central na composição pictórica passaria a se integrar ao conjunto, ao todo. Isso equivale a dizer que a imagem do já iconográfico modelo esquemático de Lisa Gherardini, a “Mona Lisa”, imaginado por Leonardo, partiu do desejo desse Homo universalis, renascentista, que enxerga seu gênero de forma integrada à Natureza... em que ambos os elementos são representações de Deus.

Sabe-se bem que Da Vinci defendia o conceito de que o Criador se manifestava e repousava em tudo que fosse Criação - dentro ou fora de nossos sentidos, daquilo que somos capazes de compreender. É aí também que percebemos o caminho aberto através da mente do artista: somos inseridos nessa mesma Natureza da qual somos fruto. No entanto, o Homem a altera na medida em que cria outros pontos de vista que não se restringem à primeira impressão por ela proporcionada. Aí reside a polidimensionalidade do “real”, algo que a concepção medieval do poder atuante - e, muitas vezes, limitador - de Deus inviabilizava totalmente.

A órbita e a mão esquerda

Ainda respondendo a Isaacson, para qualquer um naqueles dias em que o novo uso destas técnicas leonardescas começava a dar as caras, um efeito ilusório de refração da luz numa pintura – ainda que muito interessante – perderia feio em termos de apelo visual. Afinal, a Mona Lisa é o que é sem a necessidade de nenhuma órbita nas mãos, certo? 

Sobre sua segunda especulação (Jesus e o prodígio da não-refração), afinal, qual seria a graça de um milagre “às avessas”? Esperar que a surpresa em ver Cristo segurando um globo de cristal seja, justamente, apagar o que seria seu maior fascínio (o efeito de distorção), ainda que faça algum sentido, seria tão estranho quanto aceitar que a “falta de provas constitui-se, por si só, numa prova”... e isto também não deixa de ser “raciocínio lógico”. Só que, assim, acaba-se por criar um impasse: uma ideia cíclica que não desenvolve e com a qual não se chega a lugar algum.

A declaração de Martin Kemp, ao justificar a não-refração que se esperaria, vem, finalmente, trazer alguma fundamentação à discussão. Ele chega a identificar de que tipo de mineral nosso globo é feito: a calcita, ou cristal de rocha, ao que esclarece o comportamento ótico do que ali se vê ser completamente coerente com o que ocorreria na prática – incluindo a presença do que chamou de “bolsões de ar”. 

Em seu estudo, Die Entdeckung der Jupitermonde 105 Jahre vor Galileo Galilei, o professor Frank Keim (um pesquisador acostumado a aproximar a Astronomia da História da Arte) oferece uma teoria, no mínimo, curiosa a esclarecer uma das mais chamativas peculiaridades do globo. Para ele, a esfera, na verdade, é um mapa a nos mostrar as duas luas de Júpiter, Ganimedes (representada duas vezes) e Calisto nos três pontos brancos em maior destaque (O “Cinturão de Órion” para Kemp). A posição de Júpiter se acha exatamente no cruzamento das estolas de couro em “X” sobre o peito do Messias: a pérola. O interesse de Da Vinci por astronomia era especialmente intenso por volta da preparação do quadro em 1501, e seu projeto sobre a composição contemplaria algumas preocupações didáticas diante das novas descobertas científicas (algumas de suas anotações sobre a construção de um telescópio chegaram até nós). Logo, a intenção em se deixar a órbita “limpa” na pintura deve ter sido para que apenas servisse de fundo à representação pictórica e esquemática desta verdade adquirida das tantas observações que o mesmo praticara em Florença. Salvator Mundi, então, também não deixa de ser um casamento harmonioso entre Religião e Ciência: o saber ideal, tal qual Da Vinci defendia.

A Virgem dos Rochedos, de Leonardo Da Vinci

Imagino se um motivo para que Leonardo não se preocupasse tanto com distorções óticas não possa ter deixado algumas pistas em Paris, numa outra obra-prima de sua autoria, A Virgem dos Rochedos do Louvre. Sabemos que a execução desta se dera entre 1483 e 1485 em meio a uma grande caldeira de debates na própria Igreja visando um revisionismo sobre o Concílio de Éfeso (do ano 431), e o mistério da maternidade divina de Maria (Theotokos). Encomendada pela Confraria da Imaculada Conceição de Milão que apoiava a tese de que a Virgem fosse, de fato, Mãe de Deus no antes, durante e após a concepção de Jesus, Leonardo decidiu dar à representação uma roupagem completamente inovadora e polêmica para a época. Ao invés das clássicas auréolas de santidade, das exuberantes asas para o anjo, ou das nuvens cheias a ligar Céus e terra, o que se vê é um cenário liberto de convenções humanas, das leis da física onde tempo e espaço não mais existem e onde todos os personagens do sagrado parecem gente comum. O artista nos oferece, em troca, uma nova realidade, transcendental, metafísica e desconhecida... new age. Ali, tudo se nivela instantaneamente e se torna apenas... um, o “Unus”. Aliás, há mesmo em Salvator Mundi um “U” central na borda em couro da túnica de Cristo, ao alto do peito, que poderia significar esta mensagem. E mesmo os diferentes tipos da vegetação na paisagem, ficou comprovado não poderem coexistir em nosso plano dito real. Portanto, faria todo sentido a destituição, tanto das propriedades óticas (como esperaríamos) como da tradicional cruz ao topo (também ausente) no orbis de “Salvator”, em razão da linguagem agora não mais pertencer ao mundo natural e suas particularidades. A propósito, Leonardo ainda pagaria um alto preço pela aventura com A Virgem dos Rochedos. Rejeitada pela confraria (justamente por conta das inovações), o artista se viu, por força de lei, a refazer o quadro junto a dois colaboradores – Ambroggio e Evangelista de Predis. O resultado é o que se pode ver hoje na National Gallery de Londres.

Conclusão

Perpetuando a tendência de tudo que diz respeito a Da Vinci inspirar enigmas e incertezas (de forma justa ou injusta), o caso de Salvator Mundi apenas cumpre o padrão – ainda mais quando estão envolvidos os astronômicos US$450,3 milhões, sonho de qualquer investidor no tão sedutor ramo das Artes. A diferença é que aqui, o “muito bom para ser verdade”, de fato o é. São perícias técnicas e testemunhos sérios que estão atestando aquilo cuja resposta se mostrou evidente, mesmo, aos olhos de vários experientes connoisseurs. Ainda como objeto da maior polêmica, a pintura dá ares de se consolidar no breve rol da produção de Da Vinci, adicionando a esta um peculiar conjunto de atributos místico-figurativos. Aliás, a própria imagem em destaque de um Jesus adulto em seu tão celebrado desfile de retratos femininos é prova disto. Detentor de record e divisor de águas no capitalismo feroz do mercado de Arte, talvez a maior ironia de “Salvator” (para longe das alternadas atribuições) seja o tamanho da convulsão gerada versus a serenidade e a harmonia com as quais Cristo, ali mesmo, nos abençoa e quer nos inspirar. Se é mais fácil um camelo passar por um buraco de agulha que um rico herdar os Céus, então a máxima deve também servir para o comprador de um mítico Leonardo que, mesmo muito rico, arduamente contemplará a glória do reconhecimento. 

Átila Soares da Costa Filho 

Átila Soares da Costa Filho é designer e pós-graduado em Filosofia, História e Antropologia. Também é autor de A Jovem Mona Lisa (2013), Leonardo da Vinci's Earlier Mona Lisa (2016), e Leonardo e o Sudário (2016).

http://professoratilasoares.weebly.com

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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