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O lado obscuro dos Consulados

Nos consulados, linhas de telefone sempre ocupadas e uma plataforma web que não permite ao usuário comum fazer a reserva para o atendimento. Enquanto isso, empresas “especializadas” realizam o agendamento de serviços consulares, em tempo recorde e preciso, mediante pagamento. Embora proibida pelo código de ética profissional, listas de advogados italianos, especialistas em cidadania e que pagam comissão a intermediários, circulam no Facebook. Além disso, supostos consultores prometem acelerar as práticas para a cidadania italiana, que pode levar de 2 a 45 dias. Acesso ilegal aos nomes de juízes titulares, aos procedimentos para o pedido da cidadania, com os tempos dos processos e os nomes dos respectivos advogados, no sistema informático do Palácio de Justiça de Roma.

Esses são temas tratados pela revista Panorama, de circulação semanal em toda a Itália, na matéria da sua edição impressa, publicada nessa quarta-feira (08), assinada pelos jornalistas Stefano Piazza e Luciano Tirinnanzi, especialistas em assuntos ligados à segurança, no país e no exterior. A reportagem é a Seconda Puntata da série sobre fraudes e ilegalidades cometidas por brasileiros, no âmbito da cidadania italiana.

O deputado italiano Gianni Tonelli, secretário da Comissão Parlamentar Antimáfia, promete, já para os próximos dias, realizar uma interpelação, no Parlamento, para cobrar soluções ao ministro de Relações Exteriores, Luigi Di Maio.

Já o advogado ítalo-brasileiro Luiz Scarpelli, o primeiro a denunciar a máfia da cidadania italiana, no Brasil e na Itália, alerta para os riscos que corre o instituto da cidadania italiana, em face da ação de falsos consultores e de empresas de legalidade duvidosa. 

“Continuarei combatendo a máfia da cidadania italiana e os ‘coyotes’ que cometem crimes em série. Isso tudo é uma vergonha. A #correntedobem nasceu com esse propósito: moralizar a cidadania italiana. Eu penso o seguinte: ou os cidadãos de bem e de sangue italiano fecham as atividades da máfia ou a máfia vai acabar com a cidadania italiana”, declara Scarpelli.

Acompanhe, a seguir, a tradução na íntegra, em português, da matéria publicada, nesta quarta-feira (08), na edição impressa da revista semanal Panorama.

LEIA AQUI A MATÉRIA EM ITALIANO

O lado obscuro dos consulados

A nossa pesquisa sobre as fraudes do Brasil para "transformar italianos" tem mais desenvolvimentos. Os tempos da burocracia das nossas representações no País sul-americano são contornados por agências que sabem como acelerar as práticas e sobre isso especulam. mas não basta: o atual emaranhamento de normas favorece arbítrios e abusos.

Por Stefano Piazza e Luciano Tirinnanzi

“Em breve, farei uma interpelação parlamentar sobre a história que a Panorama trouxe à luz”, diz furiosamente o secretário da Comissão Parlamentar Antimáfia, Gianni Tonelli, após o artigo sobre os Golpes a brasileira que narramos, no último número. "Quero saber se nosso ministro das Relações Exteriores Luigi Di Maio está ciente do fato de que existe um fluxo de imigração ilegal, feito à sombra da lei, para facilitar a entrada na Itália daqueles que não têm direito, sob falsas aparências. Di Maio sabe que existem agências que, sem nenhum título, nem legitimação pelo Estado, costumam interagir com os nossos Consulados e as ramificações do Ministério das Relações Exteriores? Essa má prática pressupõe cumplicidade ideológica, quando não conivência direta, dentro dos consulados italianos no exterior. O que Di Maio pretende fazer para acabar com esse comércio? Parece-me incrível que a Farnesina permita tal escândalo ".

Os números do fenômeno são, na verdade, anormais. Junto aos consulados italianos no Brasil, os solicitantes da cidadania – ao menos os regulares - são hoje cerca de 70 mil, com tempos de espera estimados, de regra, em até 10 anos. Por exemplo: são 30 mil, no estado de Minas Gerais, em Curitiba e Porto Alegre, enquanto na capital Brasília, ao menos 25 mil pessoas aguardam. 

O caminho para o reconhecimento da nacionalidade italiana para quem tem direito passa, obrigatoriamente, pela apresentação da documentação necessária, junto aos nossos consulados no exterior. Basta marcar uma consulta no departamento responsável pela prática.

Parece tudo fácil e linear, mas não é. De fato, mesmo existindo uma linha telefônica reservada, ninguém atende o número indicado pela Farnesina, ou as linhas estão sempre ocupadas. Mesmo na web, não é possível contornar o problema, uma vez que a plataforma consular prenotaonline.esteri.it , que recentemente adotou também um novo design gráfico, não permite reservas.

É aqui, conforme observado, que entra em jogo uma série de sites na Internet, onde supostos advogados e especialistas em burocracia pública prometem o despacho da papelada em tempos precisos, mas somente mediante pagamento (apesar de o serviço público ser de natureza gratuita). Por mágica, porém, uma vez feito o pagamento da comissão - a primeira de uma longa série - a esses mediadores, eis que o agendamento com os funcionários consulares se torna facílimo. 

Boa parte desse comércio de agendamentos online leva a duas empresas privadas que operam do Brasil, a prenota4u.com.br e a prenotaeasy.com.  Assim, elas se apresentam: "Graças aos nossos profissionais,  a computadores de última geração e a software avançadíssimo, somos capazes de oferecer esse serviço".

Em 28 de dezembro de 2019, nós mesmos, da Panorama, o experimentamos, pedindo ao prenota4u.com.br fazer um agendamento junto ao Consulado  de Belo Horizonte.  Nem sequer levou o tempo de enviar o e-mail, já veio a resposta: "Esse tipo de serviço custa 2.699,00 reais (cerca de 600 euros) por agendamento, ok? Esta proposta é pessoal e intransferível, não é possível mudar o/os titular/es do agendamento durante o processo e o presente orçamento é válido por três dias. Se o pagamento é efetuado  em dinheiro por meio de depósito bancário ou interbancário, oferecemos um desconto de 5 por cento, igual a 2.564,00".

Portanto, basta pagar os agentes privados, embora sem qualquer reconhecimento oficial do Ministério de Relações Exteriores, e as portas dos consulados italianos se abrem instantaneamente para todos os aspirantes a italiano - que possuam o direito ou o desejem somente, não parece assim tão importante. A alimentar o mercado dos brasileiros que almejam o nosso passaporte, pensamos em consultores como Tiago Prati, titular de uma agência de despachantes, na província de Bolzano, que confirma: "A minha agência de despachante foi fechada e aberta várias vezes, porque as autoridades italianas não sabiam como nos enquadrar e, ainda hoje, não entendem bem o que somos. Eu realizo cerca de trinta práticas ao ano, tenho três apartamentos à disposição para aqueles que precisam de residência, um requisito, em minha opinião, enganoso que, porém, o Ministério do Interior exige. Os meus clientes estão até a seis meses, a mim pagam 4 mil euros, fiz uma centena de práticas ao longo dos anos. Verifico os papeis e os certificados do avô, mas no final das contas danço conforme a música cantada pelo ministério..."

O problema, segundo Prati, "nasce das circulares do Ministério do Interior, como a K 28, que faz crer que vindo à Itália, com visto de turismo, e inscrevendo-se como residente seja possível ter a cidadania". A referência é a uma circular do ministério, de abril de 1991, sobre "Reconhecimento da posse do status civitatis italiano a cidadãos estrangeiros de descendência italiana", que elenca os procedimentos a seguir e é endereçada aos prefeitos da Itália, aos quais é delegado o monitoramento e o relacionamento com as representações consulares.

Segundo o prefeito di Val di Zoldo (Belluno), Camillo De Pellegrin - que denunciou à revista Panorama o estranho caso das residências em massa dos brasileiros no seu município, além do método golpista de alguns intermediários que falsificam documentos - o problema diz respeito também a algumas circulares do Ministério do Interior, em particular a nº 32 de junho de 2007: "Essa circular estabelece que o recebimento da declaração de presença para a hospedagem breve de turismo (até três meses, ndr) , obtida na fronteira ou na Questura, constitui título útil para fins da inscrição anagrafica daqueles que intencionam encaminhar na Itália o reconhecimento da cidadania iure sanguinis".

Isso, segundo De Pellegrin, seria "em evidente conflito com as normas que preveem para a inscrição anagráfica o requisito da residência habitual. É, na verdade, inequívoco que uma pessoa que mora por um período máximo de três meses, não reside habitualmente na Itália." A fim de superar este obstáculo burocrático seria suficiente a revogação da circular, mas "falta a vontade política".

No esboço do decreto de segurança Salvini de 2018 foi prevista a limitação à possibilidade de solicitar o reconhecimento da cidadania italiana por descendência à segunda geração (descendentes em linha reta de segundo grau). "Aquela medida foi fortemente combatida no Parlamento e ao final foi excluída do decreto. Forte foi o peso, neste sentido, dos parlamentares eleitos com os votos do exterior", sustenta ainda De Pellegrin.

Fontes do ministério de Relações Exteriores informam com precisão ao nosso semanário que "a preocupante difusão de atividades de intermediação externa de duvidosa legalidade, no trato dos pedidos de reconhecimento de cidadania iure sanguinis, é um problema conhecido pela Farnesina". E acrescenta: "A nossa rede diplomático-consular, em particular no Brasil, está promovendo, com a máxima determinação, medidas de contraste a tais fenômenos. Os nossos consulados estão também por algum tempo ativos para o registro dos episódios de suspeita ilegalidade".

Até pode ser, mas hoje a estrada para a cidadania italiana iure sanguinis mantém-se plena de sombras e becos sem saída. Não apenas os telefones que chamam sem serem atendidos ou personagens que querem dinheiro para um serviço gratuito. Encontra-se, também, quem tem condenação por tráfico internacional de drogas... O escândalo, em resumo, não termina aqui.