UIL

Cidadania italiana: A grande naturalização brasileira

Por Antonella Di Florio, ex-Conselheira da Corte de Cassação italiana

As recentes remissões às Seções Conjuntas do Tribunal de Cassação da questão relativa ao pedido de reconhecimento da cidadania italiana iure sanguinis, formulado por alguns cidadãos brasileiros, descendentes diretos dos destinatários das medidas de naturalização compulsória e em massa, expedidas pelo Governo brasileiro, entre 1889 e 1891, representa um ponto de partida válido para refletir sobre o valor da cidadania hoje.

1. Introdução

As recentes remissões às Seções Conjuntas do Tribunal de Cassação da questão relativa ao pedido de reconhecimento da cidadania italiana iure sanguinis, formulado por alguns cidadãos brasileiros, descendentes diretos de destinatários das medidas de naturalização compulsória e em massa, expedidas pelo governo brasileiro, entre 1889 e 1891, representa um válido ponto de partida para refletir sobre o valor da cidadania hoje: isto para definir o perímetro e o quadro de um direito fundamental que, em época de migração, é constantemente sujeito a contestações, visando principalmente a restringi-lo o campo de aplicação.

A história, trazida por dois recursos discutidos na mesma audiência, baseia-se em saber se a renúncia tácita à cidadania italiana dos requerentes pode ou não ser configurada após a estabilização no Brasil de seus antepassados e seus descendentes, vindos da Itália, após o decreto da chamada “grande naturalização” (que remonta a 1889), que lhes dera, com uma provisão maciça, a cidadania brasileira: circunstância que, segundo o Ministério do Interior, havia conseguido uma renúncia tácita à italiana.

A questão, portanto, levanta a questão fundamental de saber se a condição de cidadão pode ser objeto de renúncia por mera permanência em outro país e na falta de manifestação de vontade ou, ao contrário, se a intenção abdicativa deve ser expressamente expressa, tendo em conta a natureza específica do direito.

2. Os casos concretos

Os fatos objeto dos recursos (e das alegações aqui publicadas) têm origem nos pedidos de apuração da condição de cidadão italiano, formulados por alguns brasileiros.

Em ambos os casos processuais, os requerentes, descendentes em linha reta de cidadãos italianos que emigraram para o Brasil no final do século XIX, fundamentaram seu pedido de reconhecimento da cidadania italiana no critério denominado ius sanguinis.

Tendo documentado a descendência ininterrupta de cidadãos italianos que emigraram para o Brasil no final do século XIX, o Tribunal ordinário de Roma acolheu o pedido dos requerentes e, consequentemente, ordenou aos órgãos competentes que procedessem às inscrições, transcrições e averbações legais, em os registos do estado civil. Em particular, vinha rejeitada a exceção ministerial da chamado "Grande naturalização", segundo a qual com o decreto n. 58 de 1889 - do governo provisório brasileiro - havia sido introduzido um mecanismo de renúncia automática de cidadania para todos os cidadãos estrangeiros (incluindo italianos), residentes no Brasil em 15 de novembro de 1889.

A Corte de Roma observou - por natureza de direito absoluto - que a cidadania italiana só pode ser perdida em virtude de ato voluntário e explícito e não também pela falta do exercício da renúncia à cidadania brasileira, especificando que esta não havia sido  documentada pela parte paga.

O Tribunal de Apelação de Roma, investida pelo Ministério do Interior, reformou completamente as portarias impugnadas, considerando a linha de transmissão do status civitatis interrompida, em razão da perda da cidadania italiana dos antepassados (nascidos na Itália e depois emigrados no Brasil), bem como a perda da cidadania italiana de seus filhos (nascidos no Brasil), nos termos do art. 11 do Código Civil Italiano 1865. Assumia, a esse respeito, que sua inclusão no "fórum social" brasileiro e o gozo de todos os direitos civis e políticos reconhecidos pelo Brasil levariam a uma "aceitação tácita" da cidadania brasileira e uma correlativa e "renúncia tácita contextual " àquela originária da Itália; e que a perda da cidadania italiana dos antepassados dos recorrentes ocorreria, no entanto, com base no art. 11, n. 3, do Código Civil Italiano 1865, por terem trabalhado no país de migração, aceitando, sem autorização do governo italiano, um emprego de um governo estrangeiro, por isso entendendo-se o órgão que regulamenta e permite que o cidadão estrangeiro viva e trabalhe no estado para onde se mudou . Em síntese, os motivos que dificultam o reconhecimento da cidadania italiana dos apelantes derivariam da interrupção na linha de transmissão desse status, em decorrência de eventos relativos tanto aos ancestrais (nascidos na Itália e depois emigrados para o Brasil), quanto aos seus filhos (nascidos no Brasil).

O recurso das duas sentenças perante o Tribunal de Cassação baseia-se em múltiplas razões que visam destacar, em síntese, que a perda da cidadania italiana não poderia ser consequência de conduta implícita ou ato de dominação de outra nação; e que a perda da cidadania em decorrência da aceitação de um emprego pelo "governo estrangeiro" deve ser entendida, nos termos do art. 11 co 3 c.c. 1865, em sentido restritivo, podendo reconhecer-se apenas na hipótese de assumir um emprego do qual decorre uma pertença e lealdade orgânica à nação de referência; que, sobretudo, os casos de abdicação e extinção da cidadania não podiam ser inferidos de simples presunções, tendo em conta que, em casos específicos, a aquisição da cidadania iure sanguinis tinha sido documentada por descendência dos antepassados.

As duas alegações da P.G., depois de terem reconstruído historicamente o caso da "grande naturalização brasileira" e as causas que a ela conduziram, ilustram claramente os pontos salientes da quaestiones iuris objeto de disputa, e pedem a afirmação de um princípio de lei de todos os partilháveis que visa afirmar que a renúncia à cidadania italiana não pode ser tácita ou resultar de fatos conclusivos, mas deve ser o resultado de uma manifestação de vontade explícita e inequívoca da qual tal intenção pode ser deduzida com certeza.

3. Conclusões

O princípio pelo qual se busca a afirmação, portanto, por um lado reforça a natureza do direito subjetivo e imprescritível de cidadania e, por outro, em tempos de migração em massa resultante de guerras, fomes e fugas de países envolvidos em repetidas violações dos direitos humanos, leva-nos a refletir sobre a necessidade de abrir uma discussão com um modo diferente de lidar com o fenômeno, tentando encontrar uma síntese inteligente entre os deveres de proteção internacional e a conveniência de nosso país para a inclusão de estrangeiros. O tema, obviamente, não poderá prescindir de um debate sobre a simplificação da concessão da cidadania, atualmente caracterizada por procedimentos demorados, caros e não automáticos, mesmo na presença de condições legais e na ausência de periculosidade do requerente.

Originalmente publicado em Questione Giustizia - 28/07/2022
Leia aqui o artigo em italiano