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Recordar é viver: Eu, o nono e a nona

O nono era alto, corpulento, tinha poucos cabelos, todos brancos. Seus olhos eram verdes e o seu rosto, apesar dos 80 anos, não estava enrugado, a pele era lisa, clara. A nona também não era muito pequena, mas tinha o corpo esguio, magro, meio arqueado. Nunca vi os seus cabelos, sempre andava com um lenço sobre a cabeça. Tinha mais ou menos a mesma idade dele. Não lembro bem da cor dos seus olhos, acho que eram escuros. Seus lábios eram finos, meio retos, ao contrário do nono, que os tinha bem delineados.

Como eu gostava de vê-los. O nono me passava paz, era um homem de poucas falas, porém terno,  afetuoso.Colocava-me em seu colo, apertava-me com a força do carinho e sussurrava ao meu ouvido (eu sentia o seu hálito, tinha o cheiro de campo): e ora? De vez em quando, falava sobre Treviso, a terra dos seus pais. A minha nona também não falava muito. Não precisava. Suas mãos, de dedos longos e grossos, apertavam a minha cabeça com uma doçura que jamais esqueci.

O nono e a nona moravam em uma cidade para onde foram levados pela maioria dos seus 15 filhos, ansiosos por livrar-se do trabalho duro nas três colônias, à beira do rio das Antas. Meu pai comprara uma casa para eles. Ficava mais ou menos a um quilômetro de onde eu morava. Para quem tinha cinco ou seis anos, era uma distância enorme, quadras e mais quadras.

Aos domingos, minha mãe preparava uma galinha com massa, polenta e salada de radicci. Meu pai ia busca-los para almoçar.Em torno da mesa farta, com o queijo parmesão passando de mão em mão, meu pai falava em italiano, um dialeto, com eles.Eu não entendia nada, recordo apenas de algumas palavras como demo tcho. Enquanto isso, o garrafão enchia os bicchieri de vinho tinto. A polenta era cortada com uma linha de cozer, a massa feita em casa, pela minha mãe, fumegava quando o molho da galinha se esparramava sobre o prato.

E eu ali, com o queixo batendo na beira da mesa, alegre, olhando para o nono e para a nona. Como eu gostava deles! E como eles gostavam de mim. A minha mãe dizia que eu era o neto preferido. Não sei...

Só sei que às vezes eu sentia uma saudade imensa deles. Pois os domingos demoravam a chegar. Assim, um dia, tomei uma decisão: eu iria vê-los. De calça curta, ofegante, percorri a distância que separava as casas. Não pensava em nada, eu só queria ver o nono e a nona.

Quando cheguei, eles não conseguiram esconder a surpresa, logo substituída por uma indisfarçável alegria. A minha tia Amabile, que morava com eles, ficou preocupada. Diziam que ela não era muito certa da cabeça.Nunca casou, morreu em um asilo. No entanto, ela gostava de mim e eu gostava dela.

Refeitos, entramos na casa de alvenaria. Havia um corredor até chegar à porta da cozinha, ladeado por duas faixas estreitas de terra, cheias de flores. Ao fundo, um quintal, onde a nona plantava radicci, moranga para tortei e temperos.

Fomos até a cozinha, sentamos ao lado do fogão a lenha. A nona dirigiu-se até o armário e trouxe uma tigela com biscoitos de milho incrivelmente bons, que ela fazia no forno de barro.

Não sei quanto tempo fiquei, o que conversamos. Só recordo da hora de ir embora, por insistência de uma outra tia, a tia Maria. Ela imaginava o pavor da minha mãe pelo meu desaparecimento.

Então, tia Maria teve uma idéia: Guiseppe faça um ramo de flores, flores lindas, colha aqui e naquela outra casa bonita, mais adiante. Dê para a sua mãe, peça perdão, diga que não fará mais isso.

Despedi-me do nono e da nona. Percebi o nono com os olhos molhados. A nona coçava o queixo, o semblante inquieto.Ela me beijou e me deu um sanduíche com pão feito em casa recheado de doce de figo. Abracei a tia Amabile, a tia Maria, olhei para o nono e a nona. Sorri, sorri com aquele sorriso de cumplicidade. E tomei a rua. A volta foi demorada. Colhi mais flores no caminho. Fiz um buquê do meu tamanho. Finalmente, cheguei em casa para o confronto com aquela mulher que era minha mãe, cujo maior orgulho era dizer: sou italiana legítima. Vivia falando isso.Não parava de falar nisso.

Ela me recebeu em silêncio. Pegou as flores, agradeceu, apanhou um chinelo de couro e bateu no meu traseiro várias vezes. Em meio às chineladas, apenas a ouvia dizer que estava me surrando para eu aprender a não fazer uma coisa tão errada. Chorei, apesar de ela não ter aplicado muita força. Depois da sova,  fui para o quarto com uma sensação: valeu a pena. Eu vi o nono e a nona. 

José B.D. Zulian
(neto da nona e do nono)